Curta Paranagua 2024

Todo Mundo Ama Jeanne

Das profundezas do fracasso à superfície de um recomeço

Por Paula Hong

Festival de Cannes 2022

Todo Mundo Ama Jeanne

A capacidade de verbalizar o mínimo necessário para aparentar sanidade enquanto um turbulento e incessante fluxo de pensamentos acontece, é dominada por poucos. Em “Todo Mundo Ama Jeanne”, Céline Devaux (“Le Repas dominical”) interpola a intrusividade poderosa dos pensamentos de Jeanne (Blanche Gardin) e os infelizes acontecimentos que os impulsionam, mostrando que o blasé monocromático de suas roupas em contraste com uma Lisboa ensolarada disfarçam as facetas que, por intermédio da animação, nos fazem cúmplices do que realmente se passa dentro dela.

O longa-metragem trabalha em cima de situações que alternam entre alívio cômico e passagens por um luto desencadeador de memórias, nostalgia e culpa, resultando num desfecho previsível ancorado na brevidade de envolvimentos românticos, mas que ainda assim consegue acalentar o coração por trazer resolução de conflitos — sobretudo os internos — da personagem principal.

De início, um dos aspectos estéticos que chama atenção em “Todo Mundo Ama Jeanne” está na apresentação caótica de seus pensamentos, através dos quais somos colocados na primeira fileira de quem recebe o que Jeanne realmente pensa. Ela é imediatamente desnudada e, com isso, essa aproximação permite certa identificação pela filtragem de palavras que ela é capaz de fazer entre o que pensa de verdade e o que verbaliza.

Essa abordagem por intermédio da animação ajuda na construção das facetas de Jeanne ao mesmo tempo que explica acontecimentos sem a necessidade de recorrer ao uso constante e exaustivo do flashback. Assim, aprendemos que ela é uma mulher cuja autoestima se mescla com o ego que se prova frágil, elaborando alternativas mirabolantes para ora investir em algo, ora para se safar de alguma situação em que ela mesma se colocou. De toda forma, acabamos por torcer por ela, mesmo que isso venha acompanhado de uma vergonha compartilhada.

Apesar dos resquícios de uma vida minimamente ordenada, duas desordens entrelaçadas a levam a Portugal: o desastre na inauguração do seu projeto e a falência financeira causada pelo mesmo. Vender o apartamento de sua falecida mãe Claudia (Marthe Keller) é a única solução para contornar a situação, dada pelo irmão Simon (Maxence Tual). O imediatismo para tanto a força enfrentar os fantasmas (muito simbolizado pela animação) emocionais que a esperam em Lisboa e outros que vivos, retornam do passado. 

Essa apresentação é muito bem colocada no aeroporto, lugar de muitas idas e vindas, encontros e desencontros, e coincidências. Jean (Laurent Lafitte) é a mais marcante delas, uma vez que sua excentricidade marca e se destoa da personalidade mais resguardada de Jeanne; aqui talvez um trocadilho que remete aos lados diferentes da mesma moeda, porém complementares. A formação do interesse romântico é complementado por outro mais complicado entre Jeanne e o português Vitor (Nuno Lopes). 

Com o triângulo amoroso firmado, Devaux então coloca Jeanne para teste, fazendo dos seus interesses românticos o menor dos problemas quando conflitos internos a desafiam a fazer as pazes com a morte da mãe para seguir em frente. Ao contrário de seu projeto afundado, sua ida forçada à Lisboa traz para a superfície um luto reprimido, mal resolvido, se expressando tanto fisicamente quanto no emocional desgastado. 

A economia de uma fotografia altamente elaborada, com planos mais estáticos, abertos e alguns mais próximos, captando seus arredores coloridos e cheios de vida, permite certo equilíbrio estético para representar essa carga toda, uma vez que já as trabalha na animação e demais efeitos visuais. Uma pena que tal recurso às vezes possa beirar a um ritmo monótono, por vezes andando em círculos com uma aterrissagem vacilante e sem muita segurança para os próximos passos a serem tomados por Jeanne que, de uma forma ou de outra, se aventura no retorno com o passado, conhecendo a si mesma, alguém que não lembra de ter conhecido (Jean) e outro que achava que conhecia (Vitor). A procedência de suas incertezas transformam-se em motivos para rir de vergonha e/ou por compaixão. 

Assim, a comédia-romântica “Todo Mundo Ama Jeanne” não tenta extrair complicações pesarosas de uma história relativamente simples para apresentar o desfecho com algum ensinamento que mudará tragicamente a vida do espectador, mas sim a carrega com modéstia e leveza que aliviam a carga dramática natural de temas amplos abordados (e incansávelmente trabalhados no cinema), como morte e amor, luto e romance, optando por deixar no caminho de Jeanne alguém que a ofereça um recomeço. 

3 Nota do Crítico 5 1

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