To Kill a Tiger
Matar um tigre sozinho
Por Pedro Sales
Festival de Toronto 2022
Em um país onde uma mulher é violentada a cada 20 minutos, conforme uma jornalista em cena, a adolescente Kiran, de apenas 13 anos, foi mais uma vítima. Estuprada por três adolescentes mais velhos, a garota conta aos pais que buscam justiça, indo de encontro com a tradição local de culpabilização da vítima e remediação local. O documentário dirigido por Nisha Pahuja, portanto, toca em uma temática extremamente sensível que se revela uma nódoa cultural na Índia e, de certa maneira, no mundo todo: o estupro. Assistir a “To Kill a Tiger” exatamente na mesma semana em que uma brasileira foi vítima de estupro coletivo na Índia é a constatação de como este crime ainda continua no país, a despeito de toda a revolução depreendida do caso apresentado no longa.
Kiran é uma garota. A inocência da jovem de 13 anos é violada durante uma festa de casamento quando três garotos mais velhos, incluindo o próprio primo, arrastam-na para um lugar isolado para violentá-la. O pai dela, Ranjit, então, lança-se na hercúlea tarefa de tentar responsabilizar os criminosos. Para isso, ele precisa ir contra os costumes e a tradição local. O Mukhya, uma espécie de líder da aldeia, localizada em Jharkhand, propõe que o pai escolha um dos estupradores para a filha se casar, afinal, ela já está “manchada”. As mulheres da aldeia também corroboram com essa ideia, e um outro homem diz que apesar do erro dos meninos, deve-se observar como a mulher estava vestida, andando e se usava batom. Quando os ativistas da Fundação Srijan entram naquela delicada história é que a família tem apoio e amparo para conduzir o crime da forma adequada, por meio da Justiça.
Para dar conta da imersão no contexto cultural e posteriormente no processo judicial, a câmera de Puhuja em “To Kill a Tiger” transita entre o participativo e o observacional. Em um primeiro momento, por meio de entrevistas, a diretora, e por extensão o espectador, ouve a história dos lábios do pai, que confessa ter amado mais Kiran que os outros filhos por ela ter sido a primeira. As perguntas posteriormente se estendem para as demais pessoas, moradores do vilarejo, os ativistas da Fundação e a própria Kiran. Contudo, a cineasta consegue alternar sua própria participação, como voz fora do campo perguntando às pessoas, com esse caráter mais contemplativo e silencioso. As aéreas com drones e planos gerais são recursos que se distanciam das pessoas em uma tentativa de capturar a rotina daquele vilarejo e não “intimidar” com a presença da câmera. É interessante também que o filme também se vale deste caráter até para pontuar as negociações com o advogado, os ativistas e as discussões com o Mukhya, mas aqui sem o distanciamento, com a câmera como testemunha que não pode ser ignorada.
A partir do momento em que a câmera em si e a presença da cineasta e equipe tornam-se personagens participantes dessa história, os ânimos se acirram e passam a ser questionados. A equipe é vista, mesmo que indiretamente, pelo avanço do processo e da iminente prisão dos culpados e, por isso, os moradores do vilarejo pedem que saia, além das ameaças diretas dos criminosos. Estes são momentos, juntamente com os relatos de Ranjit das ameaças de morte, que materializam o perigo em se opor ao tradicionalismo tacanho da comunidade. Ainda sim, mesmo dentro dessa lógica extremamente densa e sensível, o filme consegue extrair alguns momentos de sutil força por meio das imagens. Existe um corte tão forte e representativo na obra que parece resumir toda a discussão nessa mera alternância de planos. O homem usa de malabarismos ideológicos para tentar culpabilizar a vítima, como roupa, atitude. Mas, no plano seguinte, vemos Kiran pintando as unhas ou enrolando as fitas no cabelo. Sintetizando, assim, que ela é apenas uma menina, ela é a vítima dessa história, não há nenhuma “mancha” nela ou na família.
Portanto,”To Kill a Tiger” é um documentário com um potencial transformador por meio do próprio cinema. O letreiro final explica que após a vitória da família de Kiran, o registro de estupros aumentou, algo justificado em razão do aumento das denúncias. A garota, que tinha optado inicialmente pelo anonimato, mudou de ideia e deixou que sua história se tornasse inspiração para o combate deste crime. A partir do título, é possível traçar um paralelo com “O Sol é para Todos”, cujo título original é “To Kill a Mockingbird” – matar uma cotovia é tido como um pecado uma vez que tudo que ela faz é cantar, é matar a inocência, como o que acontece com Kiran. Mas aqui, Ranjit vai além de constatar e provar a aniquilação da inocência de sua filha no crime, ele contraria o vizinho que afirmou que “você não pode matar um tigre sozinho”. Os velhos tigres do fundamentalismo religioso e a presunção de culpa da vítima são colocados em xeque no tribunal. Dando início, mesmo que timidamente dada a recente notícia citada na introdução, a uma revolução cultural na Índia.