The Fall – Dublê de Anjo
Narrativa fantástica e imaginário coletivo
Por Pedro Sales
Festival do Rio 2024
Na esteira de cineastas como David Fincher, Spike Jonze e Michel Gondry, que iniciaram carreira filmando clipes musicais, o indiano Tarsem Singh também trilhou o mesmo caminho. O diretor filmou, nos anos 90, o clipe de “Losing My Religion”, do REM. Recentemente, em 2020, dirigiu Lady Gaga no vídeo musical da canção “911”. No meio disso, deu início à trajetória como realizador de longas metragens, em 2006 realizou “Dublê de Anjo”, originalmente “The Fall”. Por meio de um diálogo franco com o gênero fantástico, o longa é um espetáculo visual extremamente estilizado que aborda o caráter lúdico da contação de histórias e uma conexão improvável entre uma garotinha e um dublê na época do cinema mudo.
Em Los Angeles, durante a década de 1920, um dublê chamado Roy Walker (Lee Pace) está hospitalizado. A internação no hospital se deu após um trabalho em que o profissional pulou de uma ponte, mas não logrou êxito na aterrisagem. Lá ele conhece a pequena Alexandria (Catinca Untaru), uma menina de cinco anos que se recupera de uma fratura no braço. Quando o bilhete em que ela confessa atirar laranjas no padre cai nas mãos do dublê acamado, começa a conexão entre um homem deprimido e suicida e uma criança imaginativa. No primeiro momento, ele conta para ela a origem do nome Alexandria, remontando ao imperador Alexandre, o Grande. Após isso, ele promete à pequena uma história épica, com bandidos, reviravoltas, perseguições e aventuras.
Portanto, “Dublê de Anjo” estabelece inicialmente um contraponto entre o mundo fantástico-imaginado com a realidade. Há uma dobra narrativa em que o espectador acompanha o contador e a ouvinte, mas também a própria história contada. Semelhante um pouco com “As 1001 noites”, ou para se ater ao exemplo da história voltada a crianças, “A Princesa Prometida”. Neste sentido, Tarsem propõe um imaginário coletivo e colaborativo, os rumos da história contada pelo dublê não são fixos e estão sujeitos à mudança conforme Alexandria questiona algumas coisas. O padre que seria mau se torna bom, a nacionalidade do Bandito Mascarado muda de espanhola para francesa. Ou seja, os caminhos narrativos possuem mutabilidade e interferência de Alexandria, que também se insere na história.
O diretor ainda demonstra a proximidade entre a realidade e a história fantástica. Os personagens, por exemplo, são pessoas que fazem parte da convivência de Alexandria. O dublê Roy é o Bandido Mascarado, ela mesma, a filha do Bandido, o assistente hospitalar é Charles Darwin (Leo Bill), o entregador de gelo, torna-se Otta Benga (Marcus Wesley), e assim por diante. A realidade, então, penetra o mundo imaginário. Os soldados maus vestem-se como os operadores de raio X, e o grande vilão que reúne os heróis em uma busca por vingança, o Governador Odious, tem o rosto de Sinclair (Daniel Caltagirone), o ator do qual Roy é dublê e que “roubou” sua namorada. As motivações se cruzam, para Alexandria a história é um deleite no meio do hospital, para Roy, uma oportunidade de convencer a criança a lhe dar morfina. Essa dicotomia entre a pureza infantil e as tendências suicidas do personagem perpassam toda a rodagem e se acentuam no terço final.
Se toda questão narrativa da colaboração entre os dois já é, por si só, interessante em “Dublê de Anjo”, tal trama se sustenta bastante pela estética proposta por Tarsem. Ele não nega o exagero inerente ao gênero fantástico e propõe um apuro visual que se destaca. A introdução em preto e branco e em câmera lenta, extremamente estilizada, antecipa que a construção visual do fantástico é muito cara ao filme. Por vezes se assemelha a uma abordagem publicitária – o diretor também realizou propagandas na carreira -, mas com uma evidente preocupação na imagética. Assim, as cores saturadas contrastam com o deserto, os figurinos, por exemplo, trazem esse exagero fantástico que bebe de Alejandro Jodorowzky em “A Montanha Sagrada”.
De certa forma, é quase hipnotizante como a câmera flutua e se movimenta. Além de uma aproximação pictórica em que cada plano é construído de forma a parecer uma pintura, há sempre dinamismo visual pontuado pela movimentação e pelo tratamento de cor. A decupagem é também rica em brincar com reflexos e criar planos para raccords, isto é, quando um plano se une ao outro pela montagem, dando a sensação de movimento mas em cenas diferentes. É um filme vívido, colorido como uma imaginação infantil. Nisso, outro fator de destaque é o uso da arquitetura. Filmado em 24 países, a obra vai do deserto ao Taj Mahal. Traz à tela locações quase surrealistas, que se assemelham à escada de Escher, mas destaca a imponência das construções com contra-plongées, filmando de baixo para cima. A estilização encontra ecos na montagem que combina sons e movimentos e também em uma sequência alucinante de stop motion.
Portanto, este longa traz a questão da construção narrativa muito aliada ao espetáculo visual, em uma história que traz a conexão entre o dublê e a criança, mas que também expõe as fragilidades de um homem deprimido. Ao fim, consegue ainda prestar homenagem aos grandes dublês dos filmes mudos, Buster Keaton, Harold Lloyd – que também eram os atores e diretores – e reforça a importância destes profissionais na indústria com uma sequência curta, mas definitivamente apaixonada pelo cinema.