Terra Indomável
A terra é de todos
Por João Lanari Bo
“Terra Indomável”, série em seis episódios da Netflix dirigida por Peter Berg, revisita esse território mítico construído por um dos gêneros mais populares do cinema, o “western”. Ou “faroeste”, como era conhecido pela audiência brasileira, sempre entusiasmada, como o resto do planeta, com os desbravadores que por aquelas bandas se aventuravam. Este é talvez o dispositivo mais bem sucedido dos ideólogos de Hollywood: imprimir no inconsciente ótico dos espectadores uma predisposição épica – somos movidos por um impulso de conquista de novos espaços, do leste para oeste, em última análise resultado da expansão do capital e a consequente fundação de uma nação, os Estados Unidos. Algo que os gregos inventaram quando Homero rascunhou a Odisseia, saga do retorno de Ulysses ao país natal.
O gênero atravessou décadas, o público passou a exigir narrativas mais complexas e o entusiasmo diminuiu – mas não desapareceu. Uma das novidades de “Terra Indomável”, ao atualizar o mito do “faroeste”, é a exacerbação da violência: não é o primeiro a fazer isso, mas o fez calçado em uma materialidade histórica até certo ponto surpreendente, levando-se em conta os limites ditados pelo consumidor do streaming. Roteiro, personagens, emoções – tudo é feito para segurar esse consumidor na cadeira (ou poltrona).
A série, cujos acontecimentos ocorrem em menos de duas semanas, transcorre no que era o Território de Utah, em 1857. O eixo é a jornada improvável de uma jovem mãe (Sara) e seu filho (Devin), desesperados para chegar na Califórnia, em um mundo volátil e extremamente perigoso. Pioneiros, povos indígenas, militares e mórmons, habitam esse mundo e lutam para sobreviver – e a sequela desse embate irá ecoar por décadas e gerações.
As famosas imagens do Monument Valley que John Ford usava e abusava em seus filmes – que sinalizavam uma linha do horizonte a ultrapassar, de preferência por John Wayne, não aparecem na série. Aqui, tomadas de ângulo baixo são filmadas e editadas intensa e minuciosamente. Os pontos de vista de cada um dos grupos em conflito se cruzam, condensando uma aglomeração de perspectivas. E os ambientes variam – entrepostos de colonos, pradarias secas, tribos de indígenas, montanhas geladas. O sangue jorra dos animais, a violência é iminente, a crueldade dos agentes humanos é um dado imediato da realidade. Violência enraizada no conflito movido pelos interesses materiais dos envolvidos, balizados pela posse da terra e exploração dos recursos.
“Terra Indomável” combina de forma eficiente informações históricas com elementos ficcionais – mas vai além da indefectível expressão “baseado em fatos reais”. O responsável por esse lastro é o talentoso criador Mark L. Smith, que escreveu o script de “O Regresso”. Nos detalhes de produção, o acerto também foi feliz: a caracterização da tribo Shoshone – materiais com que as tendas eram construídas, roupas, linguagem, atores e figurantes todos native indians – foi confiada a consultoria especializada de indígenas. Personagens secundários, mas fundamentais na trama, existiram de fato – como o Governador do Território, Brigham Young, e o proprietário do entreposto Fort Bridger, Jim Bridger. E os eventos, sobretudo o “Massacre de Moutain Meadows”, que liquidou cerca de 120 pessoas, homens, mulheres e crianças, integrantes de uma caravana de fazendeiros em busca de novas terras – este, também enraizado na história.
O Massacre – utilizado como núcleo dramático de “Terra Indomável” – é dos episódios mais sangrentos da “conquista” do oeste. Foi em 1857: os agressores faziam parte de uma milícia mórmon, estabelecida em Utah (Brigham Young era mórmon). A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a igreja dos mórmons, foi fundada na costa leste por Joseph Smith, em 1830, mas sucessivos conflitos (inclusive a morte do fundador) levaram os conversos para o oeste, onde se mesclaram às disputas locais. Era uma época (e uma região) onde a aplicação das leis e a ausência de poder policial implicavam na criação de milícias, verdadeiros destacamentos paramilitares – os mórmons não eram exceção. Eram, entretanto, organizados e financiados pelas contribuições dos fiéis. Tinham como objetivo estabelecer uma teocracia, separada da União, onde práticas como poligamia – bastante polêmica no resto do país – seriam norma geral.
O poder em Washington obviamente não podia tolerar essa secessão. O microcosmo de “Terra Indomável” tem como pano de fundo a Guerra de Utah, que durou de 1857 a 58. O microcosmo: alguns participantes, entre agressores e vítimas do Massacre, sobreviveram a dois ou mais episódios da série. Caçadores de recompensas passando por Fort Bridger – Sara tinha sua cabeça a prêmio por crime cometido na Filadélfia – circulavam pela área. Os militares também, embora sem a capacidade exagerada de intervenção típica do gênero (a famosa cavalaria). Finalmente, os indígenas, os tradicionais donos da terra, que assistem a tudo entre perplexidade e revolta.
E é um branco criado pelos Shoshone quem vai, junto com Sara, filho e mais uma indígena adolescente e muda, enfrentar as atrocidades e os inimigos – ele é o ponto nevrálgico que ancora a história. Uma história violenta, por certo.