Terra Devastada
Os que dependem e os que não querem nada
Por Vitor Velloso
Mostra de São Paulo 2025
Aglomerando ideias importantes da cinematografia nacional, em especial as obras que refletem acerca da realidade social brasileira, “Terra Devastada”, de Frederico Machado, funciona como uma construção um tanto desajeitada de proposições sobre uma moralidade inexistente em determinados espaços, uma religiosidade que se envereda por caminhos tortuosos e uma vingança “necessária” — seja por um arquétipo de justiça ou de honra —, tão anacrônica quanto específica de uma realidade típica do subdesenvolvimento.
O filme se esforça para criar uma noção de apego ao personagem José (Bruno Goya), apresentando a história do assassinato de seus pais e o atravessamento temporal que nos conduz à trama de “Terra Devastada”. Transita entre os desejos de Maria (Áurea Maranhão) de proteger seu filho, a dificuldade de Glauber (Vinicius Bustani) em corresponder às expectativas de seu pai, Antônio (Buda Lira) — que espera um filho tão violento quanto ele —, além de acompanharmos, ainda que brevemente, a interessante história de Chico (Auro Juriciê) e Romão (Walter Sá), casal gay em um sertão tradicional. O problema do filme é que, apesar de bons desenhos dramáticos, a estrutura se perde em meio aos seus personagens, deixando o espectador órfão de um desenvolvimento mais cuidadoso ou elaborado.
Quando José reza para ser o Diabo daquelas pessoas, sua fúria iracunda é exposta, mas o personagem nunca dá um passo adiante, e, ao nos aproximarmos do fim, temos suas fraquezas reveladas em um momento de desespero diante do mal vindouro. Glauber aparece como essa figura constantemente posta à prova diante das expectativas, mas também não se distancia de um sujeito complexo, tanto em relação ao pai quanto a Maria. Ainda assim, permanece em suspenso até o momento de ruptura, quando decide tornar-se violento para se adequar ao pai. Da mesma forma, Chico e Romão não possuem um desfecho propriamente dito — há apenas uma doença anunciada e a ausência de uma amarra que dê conta do encerramento de seus arcos.
Essa marca acompanha “Terra Devastada”, que evoca signos do cinema nacional, mas não consegue articulá-los de forma que sejam devidamente desenvolvidos. Seus personagens tornam-se adornos de um quadro complexo, que parece sempre incompleto. Ou o roteiro, assinado por Frederico Machado, possui um belo esqueleto, mas não sabe como preenchê-lo; ou a montagem, assinada por Edver Hazin, desarticula parte dessa estrutura dramática e torna a obra tão sintética que acaba perdendo parte de sua identidade. Aliás, é notável como os minutos finais são apressados em comparação com o restante da obra, que, apesar de largos espaços, consegue lapidar parte dos conflitos entre os personagens.
Além disso, a necessidade de determinados diálogos expositivos interrompe o fluxo de construções que vinham funcionando bem. Um bom exemplo de como o filme cria uma disritmia entre suas próprias representações é a cena visualmente interessante com quatro personagens completamente bêbados caminhando por uma estrada. Glauber diz: “Eu te amo, pai”, e o pai responde: “Vê se vira homem”. Logo em seguida, há a necessidade de apresentar a personagem de Graça, interpretada por Zezita Matos, proclamando: “A gente ama quem depende da gente… ou quem não quer nada”. Ou seja, essa exposição do relacionamento conturbado entre pai e filho exige uma explicação didática, a ponto de o plano seguinte colocar em palavras parte daquilo que acabamos de assistir. O curioso é que o diálogo não é ruim, mas a escolha na montagem transforma a sequência em algo menos elaborado do que a própria concepção sugeria.
Por fim, “Terra Devastada” é um retrato de como boas ideias, com alto potencial, podem se esvaziar em um projeto que flerta com uma projeção genérica. Assim, o longa encontra um amplo campo de debate, mas, sem saber estruturar seu desenvolvimento narrativo e dramático, mantém uma lógica que opta por atalhos fáceis e resoluções programáticas. É uma pena, pois o desenho inicial do filme indicava discussões interessantes, com bons referenciais e uma revisão crítica desse imaginário estabelecido ao longo da história, tanto em suas temáticas quanto em suas abordagens sociais, mantendo a paisagem política como recorte uníssono dessa moralidade inexistente — de um “nordestern” que mina os personagens por dentro, como o Brasil se acostumou a fazer.
Nesses casos, cabe ao espectador colocar na balança o quanto o projeto acerta e o quanto desliza. Sigo acreditando nas boas ideias aqui desperdiçadas.