Terra de Deus
Ore por mim
Por Vitor Velloso
Festival de Cannes 2022
Exibido no Festival de Cannes de 2022, “Terra de Deus” (2022), de Hlynur Pálmason, é uma dessas obras que permite que o espectador tire suas conclusões a partir de um posicionamento político relativamente bem definido. Se essa afirmação parece contraditória em um primeiro momento, é necessário que haja a contemplação dos cenários e das situações dramáticas do longa, para que as analogias possam ser interpretadas a partir das pistas que são oferecidas ao longo da projeção.
Porém, longe de ser um projeto hermético que atira simbolismos como forma de compensar a falta de uma estrutura narrativa, o filme segue um padrão de criar um recorte bem definido de um contexto histórico e procura um desenvolvimento de personagem a partir de sua jornada por um país que desconhece, em uma relação pouco amistosa de ambas as partes. No final do século XIX, o protagonista Lucas, interpretado por Elliott Crosset Hove, é um padre dinamarquês com uma missão bem definida: construir uma Igreja na Islândia e registrar a população local, com seu equipamento de fotografia. Contudo, sua trajetória é marcada pela dificuldade de atravessar o território, pela relação colonial e pelo preconceito.
As possibilidades de comparação com “Silêncio” (2016), de Martin Scorsese, são inúmeras. Desde a discussão em torno do ego e do orgulho católico, personificado na figura do padre, até a relação entre a Igreja e a colonização violenta, a destruição cultural e a imposição dogmática. Está claro que aqui o recorte escolhido já elimina alguma parte da discussão, já que estamos no fim do século XIX e a colonização é um processo que havia começado séculos antes. Contudo, é interessante assumir outro longa para determinadas discussões, “Nazarín” (1959), de Luis Buñuel, onde a figura egoica de um missionário é exposta com maestria. Se no longa de Buñuel a humildade do protagonista esconde seu orgulho, aqui em “Terra de Deus” esse mesmo orgulho é virulento, agressivo e assassino. Não por acaso sua missão possui prioridade máxima em sua jornada, mesmo que isso implique em lamúrias e arrependimentos posteriores, aliás, ele é o representante de Deus e o figurão, não importa onde. Aqui, e nesses outros filmes, importa.
O preconceito e o ódio entre determinados personagens rege o tom dessa dança macabra, que queima lentamente até o calvário de sua derrocada. Nesse sentido, é muito eficaz que haja um conflito de idiomas durante a maior parte do tempo, pois as relações tornam-se cada vez mais voláteis, prestes a entrar em erupção. Por exemplo, o sentimento de Ragnar, interpretado brilhantemente por Ingvar Sigurðsson, pelo padre Lucas é uma constante incógnita ao longo do filme. Desde os primeiros minutos, sabemos que seu repúdio pelo dinamarquês é latente, mas não sua profundidade. Porém, ao longo de um monólogo, toda a carga dramática que vimos até então é despejada em duras palavras, não sem justificativa, que são capazes de sintetizar seu desprezo. Enquanto a câmera se aproxima do rosto do personagem, toda a paisagem se encerra em confissões, com o pedido de oração, não como perdão, mas desafio. Por essa razão, é como se as tentações de “Nazarín” ou “Silêncio” se transformassem na penitência do próprio protagonista, que sucumbe diante de suas atitudes egoístas e covardes, culminando em um final que traduz toda uma construção formal realizada pelo diretor Hlynur Pálmason, onde a paisagem engole os restos mortais daqueles que desafiaram atravessá-la.
“Terra de Deus” sofre com alguns deslizes no ritmo, tornando-se prolixo em determinadas situações e acaba se apressando na conclusão, criando uma dissonância com as demais passagens. Contudo, é extremamente eficiente em procurar em uma estética tão naturalista quanto macabra, um ponto de apoio para demonstrar a fragilidade de seu protagonista nos pontos em que seu orgulho é ferido. A história oral de Ragnar sobre as serpentes no lodo, é uma bela forma de sintetizar o parasitismo e o pesadelo de ver o que você cuida ser violentado por aquilo que te cerca.
A moralidade católica nessas obras é uma postura tão obsoleta quanto didática das consequências humanas que ali estão em jogo, de todos os lados.