Tempo Suspenso
Fluxo verborrágico de pensamentos intrusivos
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival de Berlim 2024
Talvez a força do cinema francês esteja mesmo em sua forma criativa de unir a tipicidade de seu próprio povo: o comportamento mais intelectualizado à pretensão-jeito cotidiano-naturalista de conduzir suas vidas e as dos outros. Assim, um cineasta francês já nasce então imbuído dessas características tão enraizadas, o que gera a maestria da criação. Qualquer “pulada de cerca” a uma estrutura mais hollywoodiana provoca um mal estar desajustado, no próprio realizador e na audiência almejada. É, esse preâmbulo é para dizer um “bem-vindo de volta” ao diretor parisiense Olivier Assayas a suas “raízes”. E na vida do campo, melhor lugar para analisar digressões existencialistas.
Seu mais recente filme, exibido na mostra competitiva ao Urso de Ouro do Festival de Berlim 2024, “Tempo Suspenso”, é sobre isso e se desenvolve pela metafísica da suspensão do tempo (este que também foi adulterado pela necessidade da quarentena durante o Covid-19), numa projeção real das racionais versus passionais idiossincrasias das personagens. Sim, esse cinema francês, mais focado no elemento universal, da emoção coloquial, é de análise psico-cognitiva, de fluxo verborrágico (e intrusivo) de pensamento (sim, tudo é pensado sem filtro e bem brainstorming enquanto falam), é como se ao “vomitar” frases, as ideias ficam mais claras e assim encontram respostas e insights a seus problemas, questões e sensos morais.
E é aí que reside a maestria: nessa pretensão cotidiana de manias genuínas que acontecem pelos entre tempos e entre espaços, pululados de humor espirituoso, articulado e cúmplice em suas reações-expressões. “Tempo Suspenso” traz uma nostalgia atemporal que conecta o espectador às neuroses possíveis e casuais desta experiência “comédia de situações”, muitas destas inclusive criadas (e de retroalimentação) por eles mesmos, para assim talvez dar mais vivacidade a um tédio dosado e equilibrado de vida perfeita e dar maior complexidade, em forma de “teia”, as suas narrativas mundanas (que para cada um é o verdadeiro tout). E aí, o espectador ganha um show de surreal drama perspicaz, de sagacidade caótica, de “brigas” passivas-agressivas, histerias excessivas de um “realista” e deboches altivos (quando falta argumento).
Narrado pelo próprio Olivier Assayas, “Tempo Suspenso” é um filme bucólico, de caseira contemplação estética, entre ambientes de natureza morta, experimentações de um novo mundo que se abre, como modelos de meias, e que no início busque potencializar os alívios cômicos, soando quase forçados. Mas ao prolongar as neuroses verborrágicas, adjetivadas, disfuncionais, julgadoras, defensivas, dissociativas e involuntárias de suas personagens, em sessões de terapias, o longa-metragem encontra seu tempo pausado: o das angústias ingênuas; o de se pensar com citações de livros; das viagens-teorias de possibilidades “tolas”; e o mais principal delas, que é a competição pela razão (de quem está certo). Outra questão característica trazida é a metalinguagem numa subjetiva percepção da própria imagem que vemos, como a câmera muito próxima, porque há também um filme sendo feito dentro de um filme.
“Tempo Suspenso” é mesmo cinema francês “raiz”, porque há literatura, cultura, estudo, história, Jean Renoir e referências sobre tudo. Talvez este filme seja uma ode ao processo da parcimônia. Até na diversão, são ingênuos, obsessivos e intelectuais ao mesmo tempo. Mas sim. Como sustentar tudo isso sem cair na caricatura? Pois é, há sim “caras e bocas” da personagem principal; há sim uma emoção mais encenada ao não naturalismo; há o artifício da fotografia em preto-e-branco para nos remeter ao passado. Podemos dizer que “Tempo Suspenso” é uma colagem de instantes e de cenas, algumas improvisadas, outras com músicas a la Beach Boys e The Doors com Flaubert, Sartre, Adele H e Madame Bovary. Assim, o filme pode ser definido como natural pelo racional. Um filme que busca a perda da inocência e a “união” do analógico com o moderno.
“Tempo Suspenso” é um filme que tem controle de seu tempo. Que sabe apresentar a contemplação e também a ação. Que conhece muito bem qual reação deve ser conduzida para cada situação. Esta obra assume-se como amadora, de pretensão orgânica, de cinema francês clássico (que foca no conteúdo fluido da palavra), e talvez por isso seja tão verdadeira e realista com suas falhas, limitações, clichês derivativos e “barrigas” na narrativa. Sim, “Tempo Suspenso” suspende também nosso tempo para que assim possamos entrar de forma fisiológica nas excêntricas (e aceitadas) maneiras de ser do povo francês.