Tantura
Estado de silêncio
Por Vitor Velloso
Durante o É Tudo Verdade 2022
A política de esquecimento é uma ideologia que cria uma cortina de fumaça nas sociedades, promovendo uma promoção da história através das mentiras e de depoimentos farsantes que ignoram a realidade material. “Tantura”, dirigido por Alon Schwarz, é uma demonstração da necessidade de debater a questão da propriedade na formação de determinadas sociedades, para além de um embate de ideias e construções teóricas. Conscientemente, diversos personagens presentes no documentário mentem sem pudor diante da objetiva, a fim de manter a integridade moral e o orgulho de vencer uma “batalha” durante a “Guerra de Independência” que é um massacre histórico.
No atual cenário geopolítico internacional, discute-se o que é “crime de guerra”, a soberania de determinados Estados e o boicote de toda uma cultura ligada a um povo. Contudo, existem uma série de questões que são deixadas de lado, não por ignorância, mas por uma seleção dos tópicos a serem debatidos. Além dos inúmeros exemplos recentes, em diversos cantos do mundo, é possível recordar de duas falas emblemáticas para o que o filme se propõe. 1 – O pedido dramático de Gal Gadot pelo fim do conflito entre Palestina e Israel, alegando que os dois lados só querem paz. 2 – Yuval Harari, professor de História, e israelense, quando comentou que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia é a primeira vez que um Estado invade outro, desde a Segunda Guerra Mundial. Em ambos os casos, fica claro aquilo que “Tantura” debate exaustivamente, como as inúmeras provas são ignoradas em favor de uma manutenção do orgulho e do ódio. Não trata-se de uma construção apenas promovida pelo Estado, mas o deboche dos entrevistados, a negação e a demonstração de indiferença com a vida.
Tudo isso está presente em um longa-metragem que é construído a partir de depoimentos e materiais de arquivo, com diversas imagens e aproximadamente 140 horas de áudios. Esse retrato da pesquisa de Teddy Katz e como a instituição acadêmica israelense, e parte da sociedade, acobertou todos os crimes do Estado, é feito a partir de um lento trabalho, que destrincha os fatos, desmontando algumas afirmações contundentes iniciais e uma capacidade de síntese desse vasto material que possuía em mãos. Nesse sentido, é interessante ver como Alon Schwarz se preocupa em criar um mapa da região que está tratando, não apenas abordando as mortes e as mentiras, mas a região em si, com a exposição de mapas e determinadas análises que mostram, explicitamente, as mudanças ocorridas no terreno do vilarejo com o passar dos anos.
Esse cuidado no embasamento dos fatos, nem sempre é visto em documentários que promovem um certo sensacionalismo ou dramatização dos fatos concretos, em favor de uma espécie de espetacularização das descobertas, ou teorias não comprovadas. Está certo que para o campo especulativo, algumas dessas estratégias formais podem ser utilizadas, mas “Tantura” não cai no lugar comum dessas caricaturas históricas e permanece na materialidade, no massacre e na propriedade, tema central desta discussão, já que o evento retratado possui esse caráter, em um primeiro momento. Não cabe na crítica se alongar em parte do conflito entre os povos, ainda que o filme seja capaz de demonstrar como a construção de um consenso, tanto em Israel, entre os assassinos e sociedade, ou mesmo na mídia, cria uma falsa comoção em torno de um massacre que sintetiza parte dessa longa trajetória.
Tão desconfortável quanto denunciatório, “Tantura” é uma obra que não se esconde em falsas verdades e parece atravessar uma série de resistências culturais, políticas e religiosas para alcançar uma construção que seja capaz de ser minimamente honesta consigo mesma, em contraposição aos seus personagens que negam a obviedade dos fatos. Não muito diferente das risadas dos torturadores em “O Ato de Matar” (2012) ou “O Peso do Silêncio” (2014), os assassinos presentes no filme desdenham das mortes e gozam do privilégio de serem protegidos por diversas camadas e instituições da sociedade.