Ste. Anne
Imagens errantes
Por Vitor Velloso
Durante o Festival Ecrã 2021
“Ste. Anne” de Rhayne Vermette lembra a falta que um cinema presencial faz. O filme exibido no Festival Ecrã 2021 é uma experiência curiosa e que se diferencia do resto da programação. Ainda que possua os traços de um certo irracionalismo europeu em sua construção inicial, consegue captar figuras errantes em uma espécie de aberração do real. Os primeiros minutos são desanimadores, apesar da razão de aspecto saltar os olhos em um primeiro contato, os planos gerais retratam a natureza com o mesmo olhar fantasmagórico das demais obras, procurando os monstros à espera de um quadro imóvel. As cores sem vida e os diálogos anunciam “mais um filme assim”, mas as coisas caminham para outro lado.
O longa parece um pesadelo memorial que se avoluma com o passar do tempo. A curiosidade é que o olhar arquitetônico de Vermette consegue uns planos curiosos, objetificando pequenos recortes do quadro, encontrando silhuetas inusitadas e alguns travelling a la Garrel. Só que o transe das imagens vai criando figuras errantes que assombram a tela como quem procura a desfiguração do plano. As luzes atravessam para mostrar o medo, entidades que não poderiam ser concebidas nas ideias, apenas no cinema. “Ste. Anne” idolatra as luzes e não faz corpo mole para jogar um azul em um rosto, um lobo ou mesmo olhos que aparecem em meio às sombras com algo indescritível à direita. Por essa razão, quanto mais próximo ao fim, mais o espectador abraça os fantasmas de uma imagem que pouco se vê e quando se materializa, pouco se entende. É onde as coisas ficam abstratas, ainda que não seja necessário uma compreensão total da suposta linha narrativa apresentada. A fragmentação é tão grande, que nos apegamos às sensações que as imagens provocam.
Quando há falas, o negócio fica meio enfadonho, mas as imagens acabam compensando uma experiência errante e dicotômica. A primeira metade é de uma lentidão tremenda e apesar de imagens belas, a inocuidade impera. E é difícil pensar diferente da segunda metade, só que as coisas possuem um propósito mais claro, e a matéria se torna um amálgama de experimentos que resultam em encenações que valem mais que os “diálogos”. O plano da mulher caminhando em ziguezague pelo campo, enquanto o som maltrata o ouvido do espectador, é quase hipnótico.
As histórias dos lugares que dão a paisagem de “Ste. Anne” criam algumas possibilidades de compreensão de certas figuras ali presentes, nada que comprometa o delírio de uma febre violenta que acomete as imagens. Um irracionalismo que não contamina por conta de um rigor que a luz traça, como uma fronteira do real e do pesadelo, sem nunca entendermos o que é o que. Teria sido uma experiência completamente diferente se a sessão fosse na Cinemateca do MAM, já que nenhum tipo de interferência seria possível e o espectador poderia abraçar os fantasmas com maior ímpeto, ou odiar com mais fervor. O barato é que uma perspectiva isolada e direta iria intensificar as coisas, e isso faz falta quando a exibição é caseira.
De toda forma, o filme se coloca na contramão de outras obras exibidas no Ecrã, explorando um lado primitivo não só da forma cinematográfica como da imagem e dos pesadelos que se materializam em uma linguagem que é tão errante quanto às figuras que ocupam a tela. É como a reunião dos mortos em uma seita que Brakhage rege com o rigor amedrontado dos cantos escuros da própria mente. Completamente embebido da falta de purismo dos olhares de uma criança, “Ste. Anne” é um ode macabro ao movimento insólito das memórias que assombram as imagens. A luz é a maldição limítrofe de um cinema onde o tempo é norteado pelo espaço de sua representação. E os irracionalismos mantidos, dão lugar ao horror da imaginação. Enfim, algo que se distancia da mesmice.