Simpatia pelo Diabo
Mea culpa e um ford sierra
Por Vitor Velloso
Reserva Imovision
“Simpatia pelo Diabo” de Guillaume de Fontenay é um desses casos de “reparação histórica” que a Europa tenta realizar após um breve espasmo de “mea culpa” cristã. Mas claro, o foco da obra é um francês. O longa chega ao mercado digital braisleiro e promete uma grande mudança! Um filme europeu no catálogo! Parece ilusão mas não é. Está claro que o cinema nacional pouco se encaixa na descrição do serviço: “oferecem ao público uma grande variedade de filmes cuidadosamente escolhidos com o que há de melhor no cinema mundial”. O projeto de homologação segue em curso nos países dependentes.
De toda forma, o filme de Fontenay assume a postura programática do cinema europeu ao tratar da questão Sarajevo. Constrói um caráter heróico em torno de Paul Marchand, mas comete o mesmo erro que o protagonista denuncia em determinado momento da projeção: “Nós deveríamos falar deles, não de nós”. O longa está pouco preocupado em discutir a geopolítica da situação que representa na tela e parece utilizar uma desculpa exposta na própria obra: “Ele é fotógrafo, geopolítica não é o forte dele”. Não por acaso, o espectador percebe que as intenções de “Simpatia pelo Diabo” passam longe da necessidade de debater em torno da realidade do massacre, mas sim de reforçar o bom mocismo de quem estava lá para cobrir a guerra. Em um dos momentos a “pressão” colocada é uma divulgação de informação em massa com os veículos: Le Monde, New York Times, CNN e outros. É uma piada pronta.
Ainda assim, o projeto busca algum dinamismo que não procure o fetichismo das mortes em massa. Nesse campo, as coisas até funcionam parcialmente. A câmera acompanha o protagonista por toda a jornada, para cima e baixo, sempre instável, à espreita de algum acontecimento. A utilização dos espaços diante do personagem é interessante nesse sentido, já que nos momentos de menor tensão, o espectador fica esperando que algo irá irromper. E esse tom da linguagem sempre inquieta, consegue criar a urgência da própria misancene, tudo é hostil e repleto de dicotomias. O problema é que o drama moral e ético vivido por Paul (Niels Schneider), não possui um caráter distante dos padrões dominantes que o personagem tanto denuncia. O jornalista é antes de tudo, um militante. A imparcialidade é uma farsa fomentada pela classe dominante. Mas em “Simpatia pelo Diabo” sua militância é deslocada da função de jornalista, como um ofício humanístico. Não por acaso ele proclama “Quem disse que eu sou jornalista?”.
Está claro que a proposta é situar a denúncia a partir dos absurdos que ocorreram, os crimes (tudo que aconteceu) cometidos etc, contudo, a centralização desses acontecimentos na figura de alguém que veste uma moral tão proclamada dessa articulação “revoltosa” pós-68, é mais uma burocracia do eurocentrismo diante de uma verdadeira possibilidade de diagnósticos dos erros históricos. É mais um orgulho por ter esse nome ligado ao país, que um pedido de desculpas pelo massacre.
E ainda que algumas articulações formais possam funcionar a favor de uma velocidade narrativa, a montagem e os dramas ali apresentados são confusos, desinteressantes e prolixos. Existem muitas “barrigas” na unidade final que é apresentada. O arranjo de emoções, entre altos e baixos, funcionando em diversas línguas, mostra que o barato internacional acaba funcionando a favor da própria produção, assinada por três países diferentes.
A fotografia tenta aquele tom cinzento já predominante em obras como essa, mas consegue passar a sensação de um clima tão hostil quanto às políticas imperialistas, ainda que repita alguns padrões espaciais para conseguir isso.
“Simpatia pelo Diabo” não consegue se descolar da fórmula centrista que estamos habituados e acaba reproduzindo uma série de padrões formais, com a representação clássica da questão Sarajevo, travando em uma “mea culpa” fajuta que tenta um caráter messiânico na moral de seu protagonista. Não consegue ser tão dinâmico como acredita, ainda que se esforce no tom inquieto da imagem, e termina na prateleira dos projetos que o streaming brasileiro abraça com o vigor que tanto conhecemos.