Setembro 5
Institucional oportunista
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2024
Um dos maiores cinismos possíveis no cinema é uma obra que simula boas intenções, mas, na verdade, cumpre uma agenda política programática estabelecida através de uma lógica institucional. “Setembro 5”, de Tim Fehlbaum, que já possui título traduzido na estrutura importada, é uma dessas obras claramente direcionadas para uma articulação política enviesada, ainda que tente manter algum tipo de verniz jornalístico imparcial—uma falácia tão tacanha quanto maldosa—que “Guerra Civil” (2024), de Alex Garland, tentou surfar recentemente.
O longa parte do acontecimento durante as Olimpíadas de Munique em 1972, a primeira Olimpíada integralmente televisionada, para supostamente contar a história da cobertura da rede de televisão norte-americana ABC durante os ataques ocorridos na Vila Olímpica. Contudo, “Setembro 5” demonstra ser tanto um institucional da ABC quanto uma obra tendenciosa, que cria falsos caminhos de debate para a complexidade dos termos a serem utilizados, dos contextos analisados e das representações que a televisão realiza/realizou em torno do ocorrido. Assim, o maniqueísmo do filme se desenha da seguinte forma: em algum momento da obra, um jornalista francês e uma alemã trocam farpas sobre o passado recente alemão; em outro, a discussão é se vão utilizar o termo “terrorista” durante a reportagem; em outro, é sobre os dilemas éticos jornalísticos.
Afinal, o longa realmente quer debater esses dilemas éticos? Procura trabalhar como as diferenças culturais e históricas dos países de origem dos jornalistas poderiam mudar a percepção deles sobre a cobertura que está sendo realizada?
A resposta para qualquer pergunta nessa direção é: não. O projeto de Tim Fehlbaum está mais interessado em mostrar a eficiência, o profissionalismo e a “imparcialidade” da ABC durante a cobertura—capaz, inclusive, de gerar uma das imagens mais icônicas do atentado (o palestino utilizando a máscara na sacada do prédio)—do que necessariamente refletir sobre o que tudo aquilo representa. Aliás, na “construção” da famosa cena, uma música tensa, emulando trilha sonora de terror, surge e paira sobre os espectadores, com a intenção de demonstrar o verdadeiro perigo. Não por acaso, “Setembro 5” é lançado em data oportuna, com o atual contexto entre Hamas e Israel, mesmo que o terrorismo de Estado jamais seja mencionado na película, lembrando que, desde 1948, são inúmeros os casos de abuso contra o povo palestino.
Este é o maior problema da obra: recusar-se a tratar a complexidade do seu objeto, tomando como perspectiva a idoneidade moral, múltipla e imparcial da cobertura jornalística realizada pela ABC—ainda que, por vezes, esse verniz publicitário e institucional acabe transparecendo no projeto, como no diálogo: “Eu não sei sobre os israelenses, mas a família de David Berger está em Ohio, eles vão assistir.”
Assim, mesmo que a direção de Tim Fehlbaum e a fotografia de Markus Förderer insistam em criar um ambiente claustrofóbico, tentando replicar “Culpa” (2018), de Gustav Möller (que não é uma grande referência), tudo funciona em uma lógica programática e engessada para mostrar o ato heróico dos jornalistas norte-americanos, convivendo com diferenças culturais e históricas em prol da notícia. Nem mesmo os dilemas éticos conseguem deixar a artificialidade publicitária de lado; pelo contrário, quando os jornalistas descobrem que o grupo “Setembro Negro” está assistindo à transmissão da ABC, o choque dos personagens é capaz de provocar riso no espectador, pois essa suposta ingenuidade da rede de TV só pode ser convincente através da construção de uma obra oportunista e cínica em toda a sua forma.
A montagem, assinada por Hansjörg Weißbrich, trabalha com o mesmo ritmo e dinâmica de “7500” (2019), de Patrick Vollrath, o que demonstra uma limitação gritante no estabelecimento das sequências. E o roteiro de Alex David, Moritz Binder e Tim Fehlbaum cumpre exatamente a agenda que se espera de uma obra oportunista, retirando qualquer aresta, direcionando para seu ponto de interesse e utilizando a falsa ilusão da imprensa imparcial e eficiente.
“Setembro 5” é um institucional pensado para ser exibido em um contexto de tensão global, direcionando a atenção do espectador para os “verdadeiros inimigos”, representando histórias enviesadas e descontextualizadas. Aliás, nem mesmo o grupo que atacou a Vila Olímpica aparece de forma politicamente estabelecida dentro do cenário vivido na época. É tudo tão maniqueísta que todo o verniz publicitário tenta atravessar a tela com algum tom de ingenuidade, mas o público atento poderá avistar a peçonha do lançamento sem a marca d’água de uma das emissoras que produz alguns dos conteúdos de ficção mais ufanistas da televisão norte-americana.