Sempre em Frente
A beleza inata das relações familiares imperfeitas
Por Bernardo Castro
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, Saint Exupery. “Sempre em Frente”, o último projeto do cineasta americano Mike Mills é, de fato, um dos filmes que marcam a vida dos entusiastas de cinema. Um dos melhores filmes do ano passado, ele é certamente responsável por trazer alento aos corações daqueles que o contemplam em tempos de distanciamento social. Nele, o observador é conduzido à análise pormenorizada de uma família, de suas relações desgastadas pela erosão do tempo e como ela aprende a não ceder ao desgaste. É, antes de qualquer coisa, um retrato sensível e intimista do processo de constante aprendizado acerca dos vínculos interpessoais, que cingem os membros de um núcleo familiar expandido. Durante seus 107 minutos, acompanha-se a jornada de um jornalista e seu sobrinho que, enquanto estreitam laços, vão conhecendo novos lugares e pessoas e dando voz às crianças por onde passam – tudo através de imagens de alta definição e filtro preto-e-branco.
Ironicamente, mesmo com a ausência de cores, “Sempre em Frente” é um dos filmes mais coloridos dos últimos tempos, em virtude da graciosidade e simplicidade com a qual as temáticas profundas e complexas são traduzidas para as telas, passadas através da ótica imaculada e pueril de uma criança. Tais temáticas, como a morte da matriarca da família, a doença do pai do jovem e as contendas que levaram ao afastamento dos irmãos são abordadas nas entrelinhas, entre detalhes sutis e nuances de diálogos. O realizador é responsável por um imenso avanço epistemológico na construção da linguagem cinematográfica, engendrando novos artifícios técnicos ao decorrer do filme. Pródigo em inovações, Mike Mills empreende energias para alinhavar uma narrativa centrada no seu próprio microcosmos de maneira totalmente inusual.
Apesar de ser uma ficção, ela comporta uma série de camadas e, dentro de seu arranjo ficcional, opera como um documentário reflexivo, com uso de entrevistas, eventuais quebras de quarta parede, recortes da vida urbana e legendas que funcionam como mensagens de texto. Ele extrai a narração e sobrepõe com filmagens aleatórias, fazendo uma colagem experimental e ressignificando os diálogos. A direção de fotografia aposta em diferentes movimentos de câmera, como tilts, planos sequências e muitos outros ao longo da obra. O diretor usufrui de excertos de livros dos mais variados para contar histórias e, principalmente, desenvolver e trazer profundidade e lampejos da vida pregressa dos personagens. Há uma inversão de prioridades na forma do longa. Em detrimento do visual, ele prioriza e constrói seu discurso alicerçado no áudio – um podcast visual, dando um toque metalinguístico ao enredo, que perpassa vários tipos de diálogos, formas de conversar, qualidades e meios de gravar som, desde conversas ao telefone até o som asséptico do gravador digital.
A transição para áudio dentro do aparelho de gravação é evidenciada no áudio de “Sempre em Frente”, especialmente quando Jesse põem os fones de ouvido. Uma “sacada genial” é denotada nos momentos em que a criança pega o microfone e o gravador, fazendo com que o espectador escute o mundo como ele escuta. A trilha sonora original capta eficientemente o sentimento e imergem as pessoas que assistem no universo e na cadência da trama. As atuações são impecáveis, com destaque para Joaquin Phoenix, que se prova mais uma vez como o melhor ator da indústria cinematográfica americana dos últimos tempos, e Woody Norman, o ator mirim que personifica o sobrinho excêntrico e enigmático de Phoenix e que, em sua tenra idade, já entrega uma interpretação “de gente grande”.
Os atores coadjuvantes, principalmente Gaby Hoffman e Scott McNairy, que dão vida aos pais do garoto, também agregam muito com suas performances e externalizam, com o nível certo de comedimento, suas angústias e frustrações. É inevitável a comparação com alguns aspectos da filmografia da falecida Agnès Varda, mas, independentemente dos esforços empregados, é muito difícil descrever a natureza simples, mas genial, desta obra prima audiovisual, que, infelizmente, foi esnobada pelo Oscar. “Sempre em Frente” distingue-se dos outros filmes da A24, produtora conhecida pelas apostas no gênero do terror e traz ao público um ar de ternura tão necessário em um momento tão difícil como o vivido. Ao final, é importante lembrar que está tudo bem chorar e não conseguir conter as lágrimas. Seja engraçado, quando você puder.