Saudosa Maloca
Mesa de bar e história para contar
Por Pedro Sales
Fest Aruanda 2023
Em uma mesa de bar, violão, cavaquinho, pandeiro e tambor acompanham a voz rouca de Adoniran Barbosa cantando “Um Samba no Bixiga”. Estes são os tempos de outrora, anterior à fama do cantor e compositor de sucessos como “Trem das Onze” e “Tiro ao Álvaro”. A investida do diretor Pedro Soffer Serrano à história do artista não é nova. O cineasta já havia mergulhado anteriormente na obra com o documentário “Adoniran – Meu nome é João Rubinato” (2018) e com o curta “Dá Licença de Contar” (2015), disponível no YouTube e projeto-base para este longa “Saudosa Maloca”. Portanto, trata-se de um projeto de amor, de carinho ao retratado, sobretudo por estender a premissa do curta, resguardando muitas semelhanças, como os atores, cenas, diálogos e a própria estrutura narrativa em que a São Paulo dos anos 50 é revisitada pela narração nostálgica de Adoniran.
Sentado do lado de fora do bar, o velho Adoniran, vivido pelo ator e Titã Paulo Miklos, olha para um edifício alto em frente ao bar Bleque Tais. O garçom Cícero (Sidney Santiago) se aproxima do badalado freguês e dele ouve, com a licença de contar, a história de como antes aquele símbolo de progresso era uma maloca, dividida pelo cantor e pelos amigos Mato Grosso (Gero Camilo) e Joca (Gustavo Machado). Começa aí a história de onde tudo começou. Dessa forma, o personagem de Cícero funciona, muitas vezes, como um recurso narrativo para dar continuidade ao relato-lembrança do cantor, intercalando o passado vívido e bem humorado, apesar de difícil, com o presente diegético. Mais acinzentado visualmente e sem a mesma glória de antes, onde o brilho vem apenas dos olhos do jovem interlocutor curioso com o que conta o mais velho.
Portanto, “Saudosa Maloca” se distancia das tradicionais cinebiografias de artistas, como os recentes “Nosso Sonho” e “Meu Nome é Gal”. Em vez de se ater ao sucesso de Adoniran no meio musical, o longa adapta os próprios versos da canção homônima, como se fosse uma cinebiografia do antes. Por isso, a narração do protagonista torna-se condizente, como antecipam os versos: “Se o sinhô não está lembrado. Dá licença de contá”. Nesse sentido de retomar o passado, há um alto valor de produção no filme. A direção de arte e o figurino reconstroem a São Paulo dos anos 50, um tempo em que a boêmia tomava de conta do trio Adoniran, Mato Grosso e Joca, e a simples menção ao trabalho era recebida como um palavrão. Um tempo em que o grupo tinha que dar “seus pulos” para conseguir algum, mas sempre preferindo o sossego da mesa de bar e da maloca querida.
Assim, trata-se de um filme dotado de leveza e humor. A vagabundagem da dupla Joca e Mato Grosso que, além de fugirem do trabalho, disputam a atenção da balconista Iracema (Leilah Moreno), faz parte de uma tradição clássica da comédia. As cenas remetem bastante ao pastelão, com um humor físico bem delineado, homenageando até Chaplin com a dança dos pães de “Em Busca do Ouro”. Em um contexto nacional, a dupla relembra a dinâmica das chanchadas estreladas por Oscarito e Grande Otelo. Enquanto os dois são a alma do cômico, a performance de Miklos transita entre o humor mais ácido para com o magnata disposto a acabar com os cortiços, durante o passado, e a rabugice ainda que terna com o garçom no tempo presente. Além disso, ele concentra em si o espírito do caipira, mantendo as origens e tentando resistir às mudanças e à urgência do trabalho em detrimento do tamborilar na caixinha de fósforo.
“Saudosa Maloca” é um filme extremamente agradável e leve, que escapa das armadilhas das cinebiografias. Ao focar na amizade dos três, nas histórias de bar e nas peripécias do trio, valendo-se do humor clássico e físico, a obra consegue provocar uma proximidade muito orgânica entre o espectador e os personagens, que acaba sendo pontuada também pelo recurso narrativo de contação de história. O cineasta, além de construir um texto cativante – com exceção talvez dos versos recitados, que parecem uma referência bastante óbvia e artificial às obras – trabalha visualmente bem suas ideias. A câmera se move pelos espaços para dar conta das interações que acontecem, e a dramaticidade quase sempre é evocada pela câmera lenta, quando algo é jogado para os ares ou as marretas acertam os primeiros golpes nos tijolos da maloca. Enquanto a montagem utiliza de raccords para pontuar passagens de tempo. Tudo isso evidencia que o filme é uma homenagem sincera e cuidadosa ao sambista paulista e sua obra.