Nosso Sonho
O sonho não terminou
Por Fabricio Duque
Filmes biográficos (especialmente o cinema brasileiro) sobre astros-ídolos da música costumam quase sempre se enveredar pela estrutura mais de telenovela, cuja narrativa folhetinesca, ora linear, ora vertical, busca a zona de conforto tanto do formato típico em se segmentar por núcleos, quanto da interpretação de seus atores, estes que constroem suas personagens no campo idealizado e projetado das ideias, sem se permitir o aprofundamento de seus papéis até o crível encontro à essência comportamental desses homenageados e suas vidas “remexidas” pelo roteiro, que podem conduzem pela “chapa branca condescendente (bem mais comum e esperado, visto que ninguém quer “se queimar”), e/ou pela verdade “nua, dura e que doa a quem doer”. Assim, parece que é acometido a esses atores um medo pela carga-pressão de não conseguir. Isso tudo acarreta não mais o intenso desafio de entrega e sim a facilidade padronizada no mais raso nível, porque na cabeça deles, podem fugir da tradução literal das existências reais incorporadas e por conseguinte descaracterizá-las por completo. A solução parece ser pragmática: “cortar o mal pela raiz”. Para que ter trabalho se o resultado nunca será bom? Não, não é nada fácil o oficio do ator.
Contudo, o próprio universo da sétima arte sempre cria seus manifestos de exceções e nos apresenta obras que reverberam uma emoção mais naturalista e um tom mais orgânico, mais humano e com mais empatia, para lidar com dramas, provas, frustrações e sucessos existencialistas desses famosos biografados. “Nosso Sonho”, dirigido por Eduardo Albergaria (do seriado “Ed Mort”), é um desses pontos fora da curva e da limitada padronização criativa, tudo por se assumir como uma obra despretensiosa e genuinamente popular (sem ser populista e/ou apelativa e/ou oportunista), numa narrativa polifônica, que traz aqui a ficção a história da dupla Claudinho e Bochecha, cuja jornada “destino” os uniu, os transformou em “parças” e marcou uma geração do “sonho que não vai terminar”. O roteiro, do próprio diretor, ao lado de Daniel Dias, Mauricio Lissovsky e Fernando Velasco, com consultoria na história de Júnior Vieira, conduz-se pela imersão coloquial da infância até o estrelado, entre números musicais e sonhos projetados, à moda de “Maktub”, em que toda a trajetória deles (de força, superação e conquista) já estava escrita.
“Nosso Sonho” também evoca um tom celestial em forma de premonição (um que de autoajuda), quando um deles, o Claudinho, que “virou estrela para sempre” (no dia 13 de julho de 2022), listou tudo o que precisavam fazer. Havia um pressa, parecendo que a “missão” dada pelo Universo tinha que ser cumprida logo, devido à curta data de validade. E assim, os dois acreditaram que suas músicas fariam sucesso e que todas as dificuldades, principalmente as da família, como por exemplo o pai, eram moderadas e facilmente contornáveis. Sim, ainda que com seus momentos de “barriga” (visto que não existe filme cem por cento perfeito), resolvidos com uma contemplativa e mais silenciosa pausa do tempo, “Nosso Sonho” atinge a maestria por uma sentimental sinestesia (mitigando completamente o sentimentalismo barato dos gatilhos comuns tão próximos de serem usados e abusados) aos “sobreviventes” dos anos noventa, que consumiam o funk mais raiz, mais melody (“Sabe / tchu ru ru / estou louco pra te ver / oh yes”) e com uma atmosfera mais ingênua, de traduzir o amor, a amizade, a família e os quereres sem raivas e imposições sociais. Em uma de suas entrevistas, Claudinho contou que Claudinho que no início da carreira eles tinham ritmo mas não tinham afinação: “Aprendemos a ter noção de palco e campo harmônico tocando em banda”. Isso é que é o mais interessante em “Nosso Sonho”, essa estrutura de work progress. De deixar o filme acontecer, adequando-se pelas novas situações e acasos surgidos. E de fazer jus a essa “febre” que Claudinho e Bochecha se tornaram. Mas aqui há outra questão: o filme busca também acontecer pelos bastidores e nunca “encher os olhos” do espectador com a glamourização do sucesso. “Nosso Sonho” caminha pela aura humanizada, de pé no chão, de manter (e conservar) esse sonho genuíno de dois garotos que almejaram conseguir viver de música, fazendo o que gostavam e não mais podarem seus talentos vendendo sapatos.
Assim como deve ter acontecido com os astros retratados neste filme, até porque é uma ficção, e assim passível de “aumentos de contos e pontos”, “Nosso Sonho”, ao injetar potência, inocência e força na trama, alcança a essência do que realmente aconteceu na vida real (principalmente pela atuação dos atores Lucas Penteado e Juan Paiva, que imprimem naturalidade e química entre suas personagens – e nós sentimos aquele “arrepio” de verdade articulada, ainda que de “mentirinha”) e faz com que o público relembre e descubra as músicas.