Samuel Fuller ou o cinema em estado bruto
Um filme é um campo de batalha
Por João Lanari Bo
O pesquisador Tag Gallagher, conhecido pelos livros que publicou sobre John Ford e Roberto Rossellini, escreveu certa vez sobre Samuel Fuller, comparando-a ao diretor italiano:
Para Samuel Fuller e Roberto Rossellini a experiência definidora foi a Segunda Guerra Mundial. Seus filmes tratam da guerra e do problema de viver depois dela. Rossellini, porém, foi uma vítima civil, enquanto Fuller matava pessoas.
Fuller tinha quase 30 anos de idade e trabalhava como repórter, quando ouviu no rádio do carro a notícia do ataque japonês a Pearl Harbor. Poderia ter pegado um posto burocrático, mas correu para se alistar como soldado de infantaria norte-americana, servindo na Primeira Divisão do Exército, a famosa The Big Red One. Queria viver a guerra como soldado e não como correspondente, para encarar o conflito na ponta do real. Quando ainda estava na Tunísia, em 1942, ganhou da mãe uma câmera Bell & Howell de 16 milímetros, que deixou de lado durante anos – mas que, no final da guerra, em maio de 1945, foi de extrema utilidade. O local era a pequena cidade de Falkenau, nos Sudetos da antiga Checoslováquia, habitada sobretudo por população alemã. Ali havia um campo de concentração: a despeito da resistência dos moradores, que não queriam admitir a devassa do campo pelos americanos, o comandante da tropa pediu a Fuller para filmar o necrotério onde se encontravam milhares de cadáveres à espera do enterro. Foram 21 minutos de imagens captadas por Fuller – um documento histórico inestimável, único.
Para Samuel Fuller convergem as mais variadas homenagens e referências de cineastas. Steven Spielberg deu a ele um papel de coronel em “1941”, seu arrasador libelo anti-guerra de 1979 (tão forte que o próprio Spielberg se arrependeu de ter feito o filme); Jim Jarmusch contracenou com Sam em “Tigrero”, documentário de 1994 de Mika Kaurismaki sobre a incursão de Fuller no mundo dos Carajás, em pleno Mato Grosso; Godard, talvez o mais assíduo nas homenagens, construiu a sequência final de “Acossado” inspirado em num dos melhores filmes de Fuller, “Anjo do mal” (1953), e fez o diretor americano definir o cinema em “Pierrot Le Fou – O Demônio das Onze Horas” (1965). Godard dedicou “Made in USA” (1966) a Fuller e Nicholas Ray. Wim Wenders teve a ideia brilhante de chamar Fuller para atuar com Denis Hopper em “Um Amigo Americano” (1977), um dos seus melhores filmes. Martin Scorcese escreveu prefácios para livros sobre o diretor, inclusive para a autobiografia de Fuller, “A Third Face”, onde assevera – se você não gosta dos filmes de Samuel Fuller, então você simplesmente não gosta de cinema.
Fuller foi um cineasta que durante 40 anos emergiu e submergiu no mundo do cinema. Começou como copy boy aos 12 anos num tabloide em Nova York; aos 17, já como jornalista, ia fundo na produção de matérias que chocavam e intrigavam ao mesmo tempo, antecipando a linguagem contraditória e inusitada de seus filmes. Percorreu o país de cabo a rabo nos trens e abrigos de desempregados, com a máquina de escrever registrando dramas e impasses da recessão dos anos 30. Depois veio a guerra, e Falkenau. Somente após essas experiências – imprensa e guerra – é que Fuller condensa e destila uma espécie de saber empírico, que constituem a matéria prima dos seus filmes – e fazem com que ele desenvolva um toque absolutamente inovador ao filmar cenas de ação, cenas moralizantes, cenas de violência sexual, enfim, cenas de emoção. Na rotina das redações dos jornais onde trabalhou, aprendeu a captar e reproduzir as vibrações populares, motivadas muitas vezes por uma curiosidade mórbida; na guerra, onde viveu a proximidade da morte, foi obrigado a lidar com as convulsões, físicas e emocionais, dos momentos finais. Com essa formação, nada melhor do que um veículo possante como o cinema, que carrega a ilusão embutida do real, para irradiar ao mundo suas vivências e obsessões. Para fazer um real filme de guerra, dizia, seria preciso atirar na audiência por detrás da tela.
Uma maneira de contextualizar esse vulcão de ideias que foi Fuller seria ligar sua trajetória ao apogeu e queda ao sistema de Hollywood – seus filmes marcam uma transição entre a produção dos estúdios e o cinema independente dos anos 60. Sua inserção entre os pequenos e grandes produtores não o impediu de imprimir marca pessoal nos filmes que concebeu e dirigiu, a despeito dos constrangimentos dos produtores (esse perfil seduzia a nouvelle vague francesa). Mas isso seria muito pouco, pois a técnica narrativa de Fuller é algo que intriga críticos e acadêmicos, em particular nas últimas décadas, quando multiplicaram-se os estudos sobre sua errática e visceral obra. Conhecida como cinema fist, ou numa tradução livre “cinema-pancada”, a técnica de Fuller utiliza uma cuidadosa objetividade jornalística para introduzir os temas, agregando o que os críticos chamam de colisões pós-traumáticas entre personagens e situações, completando com mini-editoriais dentro da própria história, com o objetivo de explicitar o conflito moral subjacente ao drama. Sua visão de mundo, sórdida e rude, introduz um permanente desconforto com os tradicionais estratagemas hollywoodianos, como o demonstra seu tratamento das cenas de amor, sempre possuídas por uma espécie de vírus destrutivo. Talvez esse viés tenha sido adquirido pela sua passagem no tabloide sensacionalista Graphic, e aprimorado nas ficções pulp que escreveu. Os personagens podem ser um repórter amoral, ou um policial infiltrado em gangues, ou uma prostituta que se transfigura em professora de deficientes mentais, ou ainda um jornalista que se interna em um sanatório – para eles, como definiu um estudioso da obra de Fuller, o perigo reside em perder a distância e ficarem muito próximos da estética do mundo em que habitam.
Além da técnica narrativa, a preocupação temática em inserir suas histórias num mundo caótico e irracional também confundiu os críticos, como o legendário Andrew Sarris, do Village Voice, que taxou Fuller de “primitivo”, mesmo apreciando seus filmes. Outros simplesmente descartaram a obra fulleriana como sendo de extrema direita, reacionária. De fato, comunistas com jeito de vilão e anticomunistas candidatos a herói podem cruzar em alguma película, mas sempre num ambiente onde o caos irracional quebra o paradigma da racionalidade. Método que seria empregado igualmente nos diversos filmes de guerra do diretor, onde obviamente a experiência da ação é a mais direta possível, como no autobiográfico “Agonia e Glória” (1980, The Big Red One), que acompanha a épica fulleriana na segunda guerra, da Sicília à Normandia, culminando com a liberação do campo nazi em Falkenau.
Entre cinema e televisão, Samuel Fuller é creditado 36 vezes no IMDb como diretor, começando com “Eu matei Jesse James” (1949) e passando por “Casa de Bambu” (1955 – rodado no Japão) e “Beijo Amargo” (1964), entre outros. É famosa sua frase em “Pierrot Le Fou”, respondendo a Jean-Paul Belmondo sobre o que é o cinema: Um filme é um campo de batalha. É amor, ódio, ação, violência, morte. Em uma palavra: emoção. Os filmes de Fuller, em última análise, representam estados críticos de energia, sempre em alta velocidade emocional, que confrontam as pessoas com seus destinos, muitas vezes a morte. Paixões tomam a dianteira, abafando a razão, e, se as circunstâncias e as fantasias sexuais mudam, muda o destino dos personagens. Desejo e prazer, raiva e medo transbordam sem freios morais. No Brasil, Samuel Fuller deixou marcas em Rogério Sganzerla, como em Bandido da Luz Vermelha, pela linguagem da imprensa sensacionalista, e também em Ozualdo Candeias, pela obsessão em filmar a realidade bruta sem mediações. Nosso Cinema Marginal, cujo marco de origem é justamente “A Margem”, de Candeias, tem em Samuel Fuller uma de suas matrizes originais.