#SalveRosa
Bem-vindo à casa de bonecas
Por Fabricio Duque
Assistido presencialmente no Festival do Rio 2025
Susanna Lira é uma documentarista raiz. Uma coletora de histórias. Um receptáculo das questões sociais. Seu trabalho é ouvir e assim ajudar a reverberar vozes e necessidades a um mundo melhor. Seus documentários são diretos, explícitos, sem rodeios e querem acima de tudo o reencontro esperançoso com a humanidade perdida, mais orgânica e empática. Sim, mas até a realizadora carioca sabe que o melhor caminho para traduzir a realidade é pela ficção, que, talvez por simular a verdade, consegue proteger mais do que simplesmente expor o mundo cão, nu e cru de nosso dia-a-dia. Nunca saberemos o porquê exato disso, mas ensaio uma tese de que nossos cérebros foram “adestrados” a preferir ilusões como forma de sobrevivência. A diretora carioca poderia contar a história de outro jeito, mas desta vez escolheu mais as ideias do escritor Mark Twain, que explica que “a ficção, ao estruturar uma narrativa coerente, pode oferecer uma compreensão mais profunda das complexidades humanas e sociais do que a realidade muitas vezes desconexa e caótica – porque a ficção tem que fazer sentido”.
O cinema de Susanna Lira, que é também de busca e que faz mais perguntas do que entrega respostas, existe na liberdade sensorial despretensiosa de aceitar o próprio tempo da vida. E por sorte, acaso e/ou intervenção divina, também nunca saberemos, os temas escolhidos estão sempre em evidência. E então, para se aventurar em seu primeiro longa-metragem de ficção, “#SalveRosa”, Susanna começou construindo uma base sólida, cercando-se de uma equipe que “não veio para brincar em serviço”. E ouviu, ouviu muito todas as ideias e até aceitou alterar o roteiro (e sua condução inicial). Essa é sua maestria e o que faz com nós espectadores adentremos melhor, de forma imersiva, inclusive nos tempos mortos propostos pela própria vida. Como disse, o longa-metragem em questão aqui escala um time de peso, e, em especial, duas atrizes em interpretações irretocáveis. Karine Teles, a mãe, e Klara Castanho, a filha. Uma que não surpreende ao encarnar, de forma possuída, uma “representante legítima da humanidade”. Já a outra causou um colapso, especialmente por ter 23 anos e interpretar uma adolescente de 13 anos.
“#SalveRosa”, exibido na mostra competitiva do Festival do Rio 2025, é um thriller social, que se preconiza como um horror existencial quase de ficção científica. Ao abordar uma modernidade pós apocalíptica já automatizada e patológica dos ambientes vivenciados neste instante em que estamos. E muito também da tradução narrativa deste filme, de naturalismo editado, e mais ágil para reproduzir a reconstituição acelerada de nosso agora, está no tempo construído. Suzanna não briga com esse tempo, tampouco o julga, mas se adequa e o faz de protagonista, de personagem principal, que intervém e produz novas dinâmicas e consequências.
Este longa-metragem é muito mais sobre um alerta de pais que “escravizam” seus filhos com a falsa desculpa de estarem preparando o futuro deles. É muito mais que uma discussão social, inclusive com o timing perfeito exposto pela influenciador Felca. É muito mais que questões morais e éticas. É muito mais que isso. O que “#SalveRosa” quer é acordar a humanidade, que está completamente dependente das redes sociais. Uma simples pergunta: quantos de vocês já perceberam que ninguém mais “anda” pelas ruas sem olhar para a tela de um celular ? Eu por exemplo escrevo algumas linhas desta análise numa viagem curta de metrô. Sim, já fomos consumidos e abduzidos pela “nuvem internet”. E tudo para que? Para viver uma experiência semelhante de “A Substância”? Você já parou para se questionar o que você realmente quer neste momento? Qual o seu propósito? Gente, apenas ter seguidores é um sonho muito fútil, perdoe a minha sinceridade.
E mais, muito de “#SalveRosa”, que tem argumento (criação) de Mara Lobão e junto com a roteirista Ângela Hirata Fabri, vem também pela fotografia de Lílis Soares, saturada ao filtro mais vívido (com um que de sonho acordado), que junto com o figurino de Renata Russo, a direção de arte de Monica Palazzo, e a montagem de Diana Vasconcellos, que constrói uma mise-en-scène de “monetizada” artificialidade crítica e proposital (por arquétipos da família perfeita, bem à moda de “Bem-Vindo à Casa de Bonecas”, de Todd Solondz, sobre a peça do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen em 1879), para assim aprofundar a partir da superfície-embalagem todas as hipocrisias, culpas, toxicidades e sadismos que todo ser humano traz escondido no mais fundo de seu âmago (que se projeta no outro, ora como transferência sugada, ora como retroalimentação, e sempre na exaustão). Aqui tudo é estranho, até que a explicação venha à tona. Entre a ingenuidade de uma e a astúcia da outra, manipulações, invejas, deslumbres, casualidades (quase fisiológicas), flertes explícitos, “bichos escrotos”, escolhas e muita fantasia, o filme vai até o limite, surta e radicaliza nos efeitos e nas proporções. Isso (o final – sem spoilers) faz com “#SalveRosa” ofereça “dignidade” ao próprio tema que aborda.
E por fim, “#SalveRosa” não é um filme maniqueísta. Longe disso. Pelo contrário. Cada personagem ali traz uma verdade, ainda que em forma de submissão ou de psicopatia. Mas sim há belas e feras; monstros e mocinhas; e há até mesmo um senso de finitude versus impunidade. Sim, este longa-metragem é sobre isso tudo, mas também é sobre muito mais coisa, que “bate diferente” em cada um. E vocês, já pensaram em criar um canal virtual para seus filhos? “#SalveRosa” venceu três prêmios no Festival do Rio 2025, o Troféu Redentor de Melhor Atriz para Klara Castanho; Melhor Figurino para Renata Russo; e Melhor Longa-Metragem de Ficção pelo Voto Popular.