Saint Laurent
Alta costura por cortes
Por Fabricio Duque
Festival de Cannes 2014
Saint Laurent. “Levei muito tempo escrevendo o roteiro. Minha preocupação era com a precisão, o detalhe. A verdade é que, como já havia outro filme sobre Saint Laurent sendo feito, inclusive com o apoio de Bergé, isso nos liberou de fazer uma cinebiografia tradicional. Não tínhamos um compromisso com uma verdade. Temos que sonhar. Um filme de ficção não é um documentário, então isso deixa de ser uma prioridade. Se você mostra um objeto a três pintores e pede que eles o reproduzam, terá três versões da mesma coisa. É o caso do meu filme. Minha liberdade está no fato de que essa é minha visão do estilista, e ela vem de fatos que me ajudaram a inventar o filme”, disse o diretor Bertrand Bonello.
Nunca se “adaptou” tanto o estilista argelino-francês Yves Saint Laurent ao universo cinematográfico. Enquanto alguns “tentam” uma biografia mais fidedigna, outros buscam o lado existencialista, contido, sutil, observador, desafiador, contemplativo, glamouroso, arrogante, egocêntrico, individualista, libertário, conceitual e estilístico. É o caso do cineasta bem peculiar e extremamente autoral, Bertrand Bonello (de “O Pornógrafo”, “Tiresia”, “Na Guerra” e sua obra-prima “L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância”), que traduz em seus filmes uma antropologia social, analisando o material bruto humano na mais pura forma intrínseca de uma inquietude polêmica, abordando assim temas delicados, e considerados tabus, com “cadência” (principalmente pela câmera que passeia sem se fazer ser notada, mas de vez em quando exagera ao explicitar, perceptivelmente, uma aproximação da imagem em um “zoom” rápido de propósito amador) e com uma naturalidade permitida ao espectador: a de ser um observador desprovido de moralidade recalcada da sociedade. Bonello “opta” por retratar os anos de “ouro”, período, “Prêt-à-Porter”.
Yves “dominou” sozinho a alta costura francesa, entre os anos 1967-1976. Doze anos. Uns acreditam na escravidão, outros na libertação, mas a opinião de que Yves a moda se revolucionou foi unânime. Busca-se também humanizar o “protagonista-homenageado” (Gaspard Ulliel, de “O Pacto dos Lobos”, “Eterno Amor”, “A Arte de Amar” e que “perdeu 12 quilos para o papel”), por “registrar” o processo criativo, as coleções de arte, as fotografias, a figura “auto-passional-destrutiva” à imprensa, a relação com o marido e empresário Pierre Berger (Jérémie Renier, de “O Garoto de Bicicleta”, “My Way”), seus casos extraconjugais, álcool, drogas e a quase destruição do “império” de sua marca YSL, “trocando” a figura social inabalável por um ser humano de carne e osso dotado de ansiedades, limitações, desejos, quereres, busca pela perfeição, medos, extremismos, “danças metafísicas”, manequins à imagem e semelhança.
Aqui, O Yves sai. Permanece “Saint Laurent”. O filme conta-se por espaços fechados, de fotografia simétrica e encenada e por iniciar com uma tentativa de Yves “confessar uma vida” a uma jornalista no ano de 1974 e “retornando” a 1967 e seu ateliê. A narrativa não linear cria elipses instantâneas de projeções-realistas-imaginadas (compreendidas nas últimas cenas do filme) em naturalidade cotidiana da vida que está acontecendo, em detalhes perfeccionistas (de ver beleza unilateral) que adjetivam seu personagem principal (“Muito complicado, precisa simplificar, ser natural como um gesto”) e em ambiência sinestésica (o espectador sente a ansiedade da busca de sexo nas ruas escuras). A escolha da trilha sonora é uma das características marcantes do diretor. Uma maestria à parte. Bonello “disritmia” o equilíbrio entre imagem e som, “inserindo” emoções extras, não tradicionais, tampouco óbvias, ao espectador. Com Creedence Clearwater Revival e The Metros mescla o glamour fino, elegante e requintado com a voz “rasgada” da “soul music” mesclado ao punk-rock, Roots rock, country rock, rockabilly, swamp rock, rock and roll, southern rock e do rock psicodélico em uma única música (“I Put A Spell On You”).
Tudo a fim de projetar um irregular desconforto integrado, sem esquecer Frankie Valli & The Four Seasons (este que “influenciou” Clint Eastwood a realizar um filme). Há cinema, música, admiração de Andy Warhol, fase “hippie”, barba, “labirintos de pegação”, câmera intimista, “animais movidos por desejo”, ingenuidade quase “Pasolini” de ser, Maria Callas e sua “La Mamma Morta”, e assim Bertrand Bonello “recria” sua “Casa de Tolerância” gay, com análises existencialistas e “efeitos de difração na imagem” metalinguística, humilhações, “first fucking”, epifanias e sons interativos (do beijo esfregado, do barulho do couro roçado, do disco arranhado), de proteção à “feiura das ruas”, de tipicidade francesa e das imaginações versus realidades. Em 1968/70/71, “resume” épocas, dividindo a tela em duas partes. De um lado, imagens reais documentais do período e do outro um grande desfile de modas, definindo estilos temporais. Reproduz-se o universo próprio, único, minimalista, “oco”, nu (“emocionalmente despido”), de olhar clínico, de se “aceitar riscos” e esperar pelas consequências positivas (a de lançar tendências).
Em outra sequência, “informa-se” por verborragia dados financeiros de uma negociação. A narrativa vai e volta como um documentário “despreocupado” da vida real. Incomoda. Só que é exatamente este o objetivo. Bonello não quer uma digestão fácil, rápida, palatável, não. Quer “colocar” o espectador para pensar e “esperar” seu real alvo, respeitando a construção do tempo com o intuito de só nos momentos finais o “insight” acontecer. “Isso é um estilo, a moda passa como um trem”, diz-se. “Não tenho concorrentes, este é o meu drama”, complementa-se com deboche vitorioso de exacerbação da elegância visual. “Eu amo corpos sem almas porque a alma está em outro lugar”, divaga-se. Aos poucos, mostra-se (sem muitos aprofundamentos) sua “fragilidade imensa que o deixa louco”, sua infância vendo filmes com tia e vestindo bonecas, seus medos personificados (as cobras), o “tédio de se tudo” (“saiu da mesmice”, “alcançou a graça” e a foto gigantesca da exposição no Louvre que “representa” muito bem seu “ego interplanetário” procurando sua “Matisse”), “representando a simplicidade da elegância”.
E é quando o filme começa a perder ritmo com as constantes digressões que nos damos conta de que tudo não passa de “memórias fragmentadas” e “momentos lembrados” de Yves Saint Laurent já idoso, que “desenvolveu obsessão pela (e da) mulher moderna”. Um longa-metragem, de quase três horas de duração, que tem tudo, menos a estrutura tradicional de “estender” uma história linearmente, respeitando assim, a capacidade do espectador de entender, pensar e concatenar quebra-cabeças a fim de montá-los na maestria do “grand finale”. Um filme de muitos filmes, majestoso, encantador, de elenco complementar com Léa Seydoux (de “Azul é a cor mais quente”) que vive Loulou de la Falaise, espécie de musa de Saint Laurent, Louis Garrel (de “Os sonhadores”) interpreta o controverso modelo Jacques de Bascher, amante do estilista, entre outros importantes; e sem contar sobre a herança do controle criativo da casa Dior (com apenas 21 anos de idade, e assumiu o desafio de salvar o negócio da ruína financeira), tampouco sobre a convocação ao exercito francês, maus tratos dos “colegas” soldados, internação em um hospital psiquiátrico e repetidas terapias por eletrochoques.
“Saint Laurent não era um homem da rua, vivia em espaços fechados, ateliês, apartamentos, quartos de hotéis e boates, que eram como pequenas prisões para ele. Daí a importância da recriação desses ambientes naquela época, suas cores, suas formas e texturas. Saint Laurent passava muito tempo em seu ateliê, coordenando de perto o trabalho de sua equipe de costureiras, sempre atento aos mínimos detalhes de cada criação”, finaliza o diretor Bertrand Bonello. Exibido na competição do Festival de Cannes 2014, o longa-metragem é a indicação oficial da França para Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2015.