Rua Guaicurus
O corpo e o espaço
Por Vitor Velloso
Durante o CineBH 2020
Uma surpresa na Mostra CineBH 2020, “Rua Guaicurus” de João Borges assimila alguns nortes que vêm sendo tomados pela produção cinematográfica contemporânea, em especial mineira, e busca um retrato sólido de uma realidade que expõe o subdesenvolvimento e a miséria social que o Brasil vive. E sempre viveu.
O filme cria uma relação entre a ficção e o documental, onde a idealização de um protagonismo se encontra apenas no complexo de prostituição que conduz a obra. As personagens e os dramas ali existentes, compõe o painel de toda a estrutura do longa, onde o social e o político encontram o espaço da moralidade, da violência e do fetiche. O sexo não é o prazer, é a subsistência. A dependência do capitalismo canhestro se prova concretizada e o corpo é o meio de se manter viva, mas a exposição do perigo aos mal-intencionadas, de mesma forma. Assim, o longa vai caminhando sempre para essa apresentação da realidade, em quadros fixos, onde o drama norteia a própria forma e suas bases são definidas pelas personagens, ainda que esse controle seja muito tênue na narrativa.
“Rua Guaicurus” não está disposto à discussão analítica, crítica, mas enquadra a realidade com tanto rigor, que a mera exposição se torna palco para o debate. Não à toa, os tempos internos do filme são deslocados para uma concepção onde o exterior é excluído, pois a única vida fora daquele espaço, político, geográfico, do corpo, é a cerveja para falar do cansaço daquela rotina e de uma fuga possível, ao encontro da família. Por isso, assistir o projeto se torna algo tão orgânico mas complexo dentro do trabalho que João Borges propõe, porque não carrega consigo a perspectiva liberal de uma organicidade social, pelo contrário, trabalha em seus pontos materiais como verdadeiros problemas e tópicos políticos que devem ser debatidos, sem o julgamento prévio do filme. E essa questão se traduz imediatamente em como o longa não recusa a discussão mas assimila a mesma como quem trata de ações e políticas como uma falha generalizada de um processo de urbanização e desenvolvimento do eterno país do futuro.
A multiplicidade de pessoas que chegam até o edifício, traz a densidade de um país de múltiplas tribos, do homem que pede desconto no programa ao que senta para cantar música sertaneja, ou mesmo das histórias de tentativa de assassinato com cinco disparos e a roleta russa. É a realidade de mulheres que são submetidas à exploração sexual para poderem sobreviver, negar o imperativo aqui, é estar de conluio com a arquitetura capitalista que torna nosso processo uma absoluta dependência. E estar de acordo com isso é perpetuar com a miséria, a fome, a exploração, o subdesenvolvimento. Não há parâmetros para como esse processo se instalou na América Latina. Ainda assim, pessoas defendem uma manutenção que foge o papel do Estado. É a miséria intelectual da vida burguesa que admira os traçantes luminosos que cruzam os céus da favela.
Não à toa, o grau de politização de “Rua Guaicurus” é dado através de seus personagens, das histórias que contam e as situações que são apresentadas na tela. Assim, o embasamento material que o filme propõe como discussão, é o empirismo de todas aquelas mulheres, a realidade em si, não como axioma burguês, mas como o próprio campo onde essas ações ocorrem. Não à toa, a cidade de Belo Horizonte surge como personagem em determinados planos do filme e sua onipresença assusta, pois nos lembra a complexidade de uma sociedade que aparece ao horizonte como algum grau de perigo e suspense para as futuras visitas das personagens do “submundo”. E essa marginalização, debatida rigorosamente em grande parte dos diálogos, é um fruto imediato de como as relações econômicas e sociais são construídas no capitalismo dependente brasileiro.
O longa consegue se articular em torno de possíveis fragilidades no ritmo, saltando a estrutura dramática entre suas personagens com uma facilidade impressionante e conforme a progressão acontece, o espectador não é pego em cansaço. E assim, o exercício didático acontece como mera exposição para o palco de ideias possíveis e não-possíveis. É o reconhecimento do palco, das ideias e de um debate que deveria acontecer em ambientes públicos.