Rapsódia em Agosto
O olho da bomba
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 1991
Em boa hora o Festival de Cannes de 2024 resolveu homenagear o grande Akira Kurosawa, um raro cineasta que atravessou décadas de intensa produtividade, celebrado como um dos indiscutíveis mestres do cinema. A homenagem foi utilizar no pôster do evento um still de “Rapsódia em Agosto”, que Kuro-san, como era conhecido entre os próximos, dirigiu em 1991 – no ocaso de sua vida criativa. Foi seu penúltimo filme, ele morreria em 1998.
Mas, qual seria o conceito da homenagem, como dizem os designers? No lançamento do pôster, os organizadores comentaram que a opção visual dá o tom para o festival que está por vir. No passado muitos foram propositadamente exuberantes e plenos do vigor cromático do cinema. Em 2024, a ideia foi baixar o tom, investir numa luz lunar – talvez mais apropriada para um festival que ocorre em meio a duas guerras terríveis, Ucrânia e Gaza. Nas palavras do release do Festival:
Toda a beleza poética, magia hipnótica e aparente simplicidade do cinema emergem nesta cena de “Rapsódia de Agosto”, de Akira Kurosawa, na época com 81 anos. Neste filme, apresentado fora de competição em Cannes, em 1991, uma avó vítima da bomba lançada em Nagasaki em 9 de agosto de 1945 transmite, aos netos e sobrinho americano, sua fé no amor e na integridade como baluartes contra a guerra, com ternura e contemplação.
Cinema e história: o filme de Kurosawa tem como pano de fundo o otimismo que reinava nas relações internacionais com o (aparente) fim da Guerra Fria, movido sobretudo pelas ações e iniciativas que o líder russo Gorbachev imprimia do desarme das tensões prevalecentes: ele foi o piloto que aterrissou (e neutralizou) 70 anos de império soviético no terreno minado e pantanoso do final do século 20, cheio de ogivas nucleares e dentes afiados – tudo isso sem derramar uma gota de sangue.
Hoje o pano de fundo, ademais das guerras, são as constantes ameaças nucleares que lemos, reiteradamente, nas declarações de Putin e acólitos. Muitos observadores já admitem como hipótese plausível o emprego de bombas atômicas “táticas” em algum momento, no conflito na Ucrânia, em função de erros de cálculo ou decisão precipitada. O flagelo nuclear – que os japoneses sofreram na carne – afigura-se novamente próximo. A repercussão de um filme como “Oppenheimer” sem dúvida compartilha essa ansiedade.
Mas, o que tinha Kuro-san a dizer naquela quadra da História? Escolheu uma narrativa simples, com forte apelo emocional, centrada numa família que vivia nas cercanias de Nagasaki. O centro dramático é ocupado por uma avó que recebe seus netos, em clima de férias: filho e nora viajam ao Havaí, para visitar tio doente, que para lá emigrou após a guerra, enriqueceu e se casou com norte-americana. Estamos numa daquelas produções ao estilo de outro mestre japonês, Yasujiro Ozu – folguedos familiares, vistos sob a ótica das crianças, enquanto os pais simulam preocupação com o tio, mas na verdade alimentam interesses escusos em relação ao business do parente, plantação e comercialização de abacaxis.
A avó, vivida pela veterana atriz Sachiko Murase – trabalhou sobretudo com os igualmente mestres Hiroshi Shimizu e Keisuke Kinoshita – leva o nome de Kane. Seu marido, respeitado professor em uma escola primária, morreu no ataque: ele e mais 80 mil pessoas, sem falar nas sequelas que atingiu a população do entorno, como câncer e deformações. Kane, a exemplo de muita gente, ficou semi-calva. Ela contraria filhos e netos ao recusar visita ao irmão, pois seria difícil conciliar a visita com seus sentimentos sobre o bombardeio atômico em sua cidade, que ceifou a vida de seu marido. O Havaí, afinal, é um estado norte-americano.
Depois de receber sua carta, o filho de seu irmão, interpretado por Richard Gere, visita Nagasaki, por recomendação do pai. Sua chegada é o ponto de virada de “Rapsódia em Agosto”: imagine-se um family movie japonês que recebe um astro do romantismo hollywoodiano em seu apogeu, como era Gere naquela época – alguém que desce do Olimpo cinematográfico para dividir o luto incomensurável dos milhares que padeceram no dia 9 de agosto de 1945, precisamente às 11h02 da manhã, quando o artefato nuclear explodiu.
Gere, naturalmente, emociona-se com as cerimônias relacionadas ao atentado em que participa. Tudo é muito simples: ainda estamos nas atribulações da família japonesa, as crianças sensíveis e lúcidas, os adultos gananciosos e equivocados. Vida que segue.