Rabia – As Esposas do Estado Islâmico

Primavera

Por João Lanari Bo

Rabia – As Esposas do Estado Islâmico

Rabia – As Esposas do Estado Islâmico”, longa de estreia de Mareike Engelhardt, em 2024, revisita um drama contemporâneo a um tempo assustador e intrigante: as histórias de jovens do chamado primeiro mundo, sobretudo europeias, que se juntam a uma “casa” – as madafas – para futuras esposas de combatentes do Exército Islâmico, ISIS, na Síria. Inspirado no relato de numerosas mulheres que se lançaram nessa aventura, o filme é um relato ficcional da trajetória de Jessica, uma francesa de 19 anos que trabalha como cuidadora de idosos em Paris e se converte ao Islam.

O “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” (ou “Estado Islâmico do Iraque e da Síria”), conhecido pelo acrônimo em inglês, ISIS, foi uma das mais sangrentas irrupções de violência no Oriente Médio no século 21. Em 2014, depois de pelo menos uma década de gestação, o ISIS – uma coalizão de diversas organizações extremistas – autoproclamou-se “Califado Islâmico”, ocupando uma área maior do que a Síria, com porções de vários países. Somente em 2016 começou a perder território, principalmente devido à intervenção estrangeira no Iraque e na Síria.  Em março de 2019, o Califado foi derrotado na batalha de Baghouz, na Síria. Derrotado, mas não liquidado.

Rabia – As Esposas do Estado Islâmico” não é o primeiro produto cultural feito no Ocidente a tratar do tema: livros, séries no streaming, filmes e documentários, como “Notturno”, realizado por Gianfranco Rosi em 2020, que narra cotidiano de moradores das fronteiras de quatro países onde transitavam os militantes do ISIS, circularam (e circulam) nos mercados. A narrativa de Engelhardt se passa na cidade de Raqqa, sexta maior cidade da Síria, “escolhida” “Estado Islâmico” como a “capital” do califado que o grupo extremista criou em partes do território sírio e do Iraque. Um dos momentos celebratórios do filme é quando “Madame”, a diretora da madafa, reúne suas “hóspedes” para comunicar a proclamação do califado.

Uma das principais personagens da trama, “Madame” é diretamente inspirada na marroquina Fatiha Mejjati, que se autodenominava Oud Adam. Sob o califado, ela administrou várias “casas”, incluindo a “Madafa 66”, amais brutal, segundo depoimentos divulgados à época. Após uma juventude privilegiada em Casablanca e estudos de Direito, ela se radicalizou, arrastando consigo o marido, Abdelkrim Mejjati, e se juntaram à Al-Qaeda no Afeganistão no início dos anos 2000. O marido é suspeito de ataques terroristas em Casablanca, 2003, Madri, 2004 e Londres em 2005. Foi morto em abril de 2005, junto com seu filho de 11 anos. Em 2014, Fatiha entrou para a brigada al-Khansa, uma milícia feminina do ISIS, antes de dedicar-se às madafas. Lubna Azabal, a atriz que interpreta “Madame” com doçura e calma sádicas, é um dos destaques de “Rabia – As Esposas do Estado Islâmico”.

Megan Northam, a atriz que encarnou Jessica, indicada ao “Cesar” de revelação feminina, é outro ponto forte – a transformação psicológica que atravessa, do trauma que a levou à fuga para a Síria até a cooptação pela diretora da “casa”, é o eixo que move a história. Na chegada a Raqqa, as meninas – Jessica tinha 19 anos, mas várias tem menos de 18 – são recebidas pela “Madame”, que toma posse de suas vidas, começando pelos passaportes, celulares, passando pelas identidades, dando-lhes novos nomes e até mesmo seus corpos com “testes de virgindade”. A mafada é também uma máquina de dinheiro: os candidatos ao casamento pagam pelas futuras esposas. Qualquer desvio de conduta é punido severamente, como foi o caso de Jessica, rebatizada como “Rabia” (“primavera” ou “quarta mulher”, em árabe).

Trata-se, enfim, de um filme que aborda aspecto pouco conhecido do jihadismo: a subjugação de mulheres por mulheres, como acontecia nas mafadas. A diretora resumiu dessa forma o resultado das entrevistas que realizou na pré-produção:

O que me impressionou nas histórias delas foi que elas não se viam como vítimas. (…) Quase todas sabiam para onde estavam indo e por quê, assim como os homens. De uma perspectiva feminista, essa diferença é fundamental, e em Rabia eu queria mostrar que as mulheres podem ser tão culpadas quanto os homens.

Um estudo publicado em 2016 na França indicava que cerca de 550 mulheres ocidentais estavam no Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS) – muitas retornaram, outras morreram ou integraram-se, de alguma forma, à vida local. Algumas esperam ser repatriados, e aguardam julgamento.

Fatiha Mejjati, por seu turno, foi capturada quando caiu o califado, mas conseguiu escapar, em junho de 2020. Continua foragida.

4 Nota do Crítico 5 1

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