Quem Vai Ficar com Mário?
Cinefilia padronizada
Por Fabricio Duque
Antes de analisar o novo filme de Hsu Chien, “Quem Vai Ficar Com Mário?”, nós precisamos falar sobre a cinefilia pulsante e inclusiva de seu realizador, um brasileiro com traços chineses, que assiste não só a todas as vertentes da sétima arte, como também às do teatro, com olhos plurais, ingênuos e ecléticos, encontrando qualificação na própria simplicidade emocional das imagens. A consequência gerada o faz recriar cenas icônicas, com metodologia quantitativa, de forma abrasileirada e de fácil absorção popular. Moderniza-se a chanchada às novas necessidades comportamento-sociais do agora, mas a base-essência é preservada em suas entranhas, analogias e piadas, especialmente por imprimir em inúmeros momentos o tom grosseiro e ofensivo, como se fosse um protocolar lembrete autocrítico, tudo para agradar a audiência, gregos, troianos e todes.
Em sua mais recente obra, “Quem Vai Ficar Com Mário?”, adaptada do longa-metragem italiano “O Primeiro Que Disse” (2010, de Ferzan Ozpetek), a narrativa quer transformar temas polêmicos-tabus (algumas já datadas) em diversão. Potencializa-se a aura-sensação caricata para assim talvez conversar melhor com o público de massa, visto que é um “filme comercial” (muito pela entrada na produção da Warner Bros. Pictures), expressão bastante mencionada na coletiva de imprensa. Isso nos estimula a questionar o que realmente é cinema. Um arte subjetiva? Sim. Possibilidades infinitas de percepções? Lógico. É, entender essa existência cinematográfica popular não é fácil. Na verdade, traduz-se como uma complexa antropologia de ser e agir. Neste ano de 2021 a parcela intelectual da sociedade redescobriu o Big Brother Brasil. Depois seguiu assistindo às “tretas” do “De Férias com o Ex”, “Soltos em Floripa” e “The Circle Brasil”. Por que esse interesse todo nas “artes populares”? Não se sabe o motivo. A única informação precisa (que não muda) é que essa nova geração de chanchada continua vendendo seu produto à pleno vapor. Aqui, por exemplo, nem a piada de “Mário? Que Mário? Aquele que te pegou atrás do armário” foi poupada. E ou a premissa da história acontecer no gaúcho Rio Grande do Sul.
O que assistimos em “Quem Vai Ficar Com Mário?” é uma colcha de retalhos de se tentar “consertar” designações rotuladas. Reacomodar as diferenças e liberdades identitárias do ser atual: bissexualidade, homossexualidade e transexualidade (e tantos outros “liades”) contra os enraizados preconceitos machistas, misóginos, homofóbicos, feministas. Só que diferente do filme original que escolhe uma ponto a ser desenvolvido, este deseja a mais completa revolução ao tentar afobadamente “resolver” centenas de anos em quase duas horas. Peca-se pelo mais. Pela urgência. Pela resposta imediata. Em querer humanizar o inimigo ao toque de um clicar os dedos, como se estivesse em um fantasioso lapso temporal de ficção científica. Quando mencionamos a cinefilia e as referências (importadas da comédia romântica LGTQIA+), adentramos na mais pessoal experiência realizada. Nós podemos começar com a personagem Lana de Holanda, interpretada por Nanny People, que evoca “Priscilla, a Rainha do Deserto” (1994, de Stephan Elliott) e explicitamente Marilyn Monroe em “Quanto Mais Quente Melhor” (1959, de Billy Wilder), só faltando mesmo a conhecida fala “Ninguém é Perfeito”. Mário, o protagonista, vivido por Daniel Rocha, também vai além ao encontrar “Beijei Uma Garota” (2015, de Noémie Saglio e Maxime Govare). O titulo também faz uma alusão a “Quem vai ficar com Mary?” (1998, de Peter Farrelly e Bobby Farrelly). Cada personagem possui sua dose de universos paralelos. Mas é o ator Felipe Abib que consegue roubar toda cena e todo glamour, diretor da companhia teatral 3ª Força, referência à saga “Star Wars”.
O que realmente incomoda em “Quem Vai Ficar Com Mário?” não é nada do que foi argumentado até agora, mas sim a necessidade de se facilitar o que assistimos. O filme nos conduz por uma fórmula, com parâmetros dos filmes de Leandro Hassum. Gatilhos comuns, clichês de clichês, ultrapassados alívios cômicos, reviravoltas facilitadoras do roteiro (escrito a três mãos por Stella Miranda, Luis Salém e Rafael Campos Rocha), discursos de efeito, mensagem de auto-ajuda, final feliz redentor, música chiclete… Neste momento, nós praticamente explodimos nossas mentes em elucubrações: o que faz este cinema se retroalimentar? O que faz as pessoas buscarem o óbvio ululante para descansar em seus momentos de lazer? O que faz o público de massa buscar a zona de conforto? Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? O que faz os diretores escolherem esta forma padronizada? Dinheiro? E por que este filme está sendo lançado nos cinemas brasileiros se ainda há mais de 2300 mortes em um único dia por COVID-19? Este cinema pensa igual a sua população de não se importar mais com vidas alheias?
Talvez a neurociência possa explicar um pouco. Nossa mente é povoada por bilhares de sinapses e conexões. Toda vez que nosso cérebro encontra uma adversidade, um show pirotécnico interno de reformulações é impulsionado. Olhar um novo formato causa confronto e defesa. Então o mercado de consumo nos molda em caixas, que recebem as mesmas instruções. O cinema brasileiro comercial é assim. Quer o adaptado para não ter dores de cabeça com possíveis trabalhos de ter que “consertar” saídas pela tangente. Assim, “Quem Vai Ficar Com Mário?” mantém a diversão das mesmas sinapses, atrofiando novos olhares e ideias. Isso tudo é uma faca de dois gumes por limitar expansões visionárias e infelizmente ajudar a reiterar moralismos conservadores. É um ciclo vicioso. Lá atrás François Truffaut não teve dedos ao criticar seu cinema natal. Mas nós aqui no Brasil temos receio. Optamos por compactuar com a mesma estrutura para não ficar mal na fita. Pois é, nós sabemos também que não é nem um pouco simples quebrar essa armadura de gerar líquidos consumos e artistas passageiros, como a geração Instagram e as músicas da Pablo Vittar, ativistas dos comportamentos vadios e dos novos amores casuais.
“Quem Vai Ficar Com Mário?” também coloca mais fogo no parquinho da interpretação, que se comporta bloqueada. Há um limite-prisão, impossibilitado de se libertar. Nas palavras do cineasta soviético Sergei Eisenstein, em “O Sentido do Filme”, define-se atuação por “autenticidade da esfera da técnica interior do ator”. “É o estado, a sensação, a experiência sentida, em consequência direta em grau máximo de expressividade”. Sim, um ator deve naturalizar seu personagem a ponto dissociá-lo da própria construção. Aqui, é o contrário. A interpretação desnaturaliza a personagem para assim encontrar a permissão de até onde se pode ir do imaginário popular, que, por sua vez, é uma construção conceitual de repetições históricas. Sim, nada é fácil quando se aborda a essência do cinema comercial brasileiro. E mesmo entre sentimentos ofensivos, estereotipados e primitivos, nós temos que olhar para “Quem Vai Ficar Com Mário?” como um reflexo atrasado de nosso povo. Que se recicla com o velho ultrapassado por medo de vivenciar a aventura do novo. Que possui um medo de que a liberdade o tire do caminho do paraíso. E que seja amaldiçoado com a ideia progressista de ser livre. “Livre-me Deus desse comunismo e dessa cerveja rosa!”, pensarão a maioria, mitando ainda dentro da Caverna de Platão.