Proibido a Cães e Italianos
Lembrar como quem ama
Por Letícia Negreiros
O calor irradiante do reviver de memórias – verdadeiras memórias queridas – é específico, único. Em “Proibido a Cães e Italianos”, a avó de Alain Ughetto recorda por ele. Trazendo as narrativas de uma Itália do começo do século XX, as incertezas e dores da guerra e o reencontrar de uma nova pátria, Ughetto materializa essas histórias, construindo seus personagens a partir de retalhos de lembranças. Luigi Ughetto não chegou a conhecer o neto. Cesira, a avó, é o contato que os homens têm um com o outro. Alain inicia a narrativa construindo o cenário para receber sua avó. Já falecida, ele também a constrói para coletar seu relato. Conversam em francês. O italiano, língua materna do avô, é reservada ao passado, a um país que já não os abriga mais. Tudo o que resta dessa ligação são algumas poucas causalidades e um punhado de terra. Para Cesira, a terra era tudo.
É a partir dela que o longa passa a tomar forma – literalmente. Cesira começa seu relato em Ughettera, a terra dos Ughetto. Onde começou sua família com Luigi, onde estão as origens de Alain. Onde “Proibido a Cães e Italianos” de fato se inicia. Ughetto fabrica a animação conforme a avó introduz lugares, pessoas, situações. Alain é parte ativa na reconstituição de seus antepassados. Não só molda seus personagens, mas também conversa e intervém em suas interações, dialogando com eles sobre a história. Há em Alain uma ânsia de ter conhecido, uma necessidade de saber e de guardar. Se lamenta por não ter conhecido o avô e é palpável na forma como molda, divaga, questiona. Ele nos convida a partilhar de tal sentimento, afinal é quase tão espectador quanto nós.
Não mostrando seu rosto, se iguala a vulnerabilidade de quem apenas vê, sem intervir. Por mais que recrie, nunca poderá de fato ter criado com seu avô. Luigi tinha mãos de trabalhador, com as quais construiu todo o passado que culminou naquele presente. O neto, com suas mãos de artista, remonta esse passado como um quebra-cabeça. Para Cesira, eles têm mãos parecidas. O diálogo proposto por Ughetto em “Proibido a Cães e Italianos” é intrigante. Ele se coloca como agente atuante entre o fato e o reconto, sendo ele a alteração inerente ao lembrar. A própria narração da avó é manipulada, estando Cesira inacessível para de fato contar sua versão. O ato de animar enquanto escuta o que seriam as memórias da avó é a materialização do ato de recordar. Os personagens são feitos das ceras emprestadas do pai; as casas, do papelão das caixas de memórias; os animais são brinquedos esquecidos pelo tempo. Enquanto na diegese ele personifica as falas da avó, na prática ele remonta a vida de seus antepassados a partir de retalhos, álbuns e histórias de terceiros.
“Proibido a Cães e Italianos” é, na realidade, uma história de terceiros. Luigi e Cesira têm suas vidas narradas por um terceiro. Ele não conheceu o neto. Este lembra dela apenas como uma senhora toda de preto a quem chamava de vó. Percebê-la como um indivíduo anterior à condição de avó é uma noção bem mais tardia. A cumplicidade e a facilidade da conversa entre Alain e Cesira também é reflexo da ânsia dele de participar, de querer ter conhecido, convivido. Não como uma criança, de memórias vagas e nebulosas, como um adulto, com consciência e os sentimentos de um.
Alain sabe que, muito mais do que de nossas infâncias, somos resultados de vários passados. Ele ama essa noção profundamente. Ama a história dos Ughetto. Ama ser neto de Luigi e Cesira. Ama as pessoas que eles foram, mesmo que distantes de seu convívio. “Proibido a Cães e Italianos” é, também, uma carta de amor. A técnica de animação, a preocupação em ressuscitar os avós, a vontade de retratar a todos e de mencionar até os mais distantes… Alain ama a história de sua família. Problemas mundiais – guerra, fome, preconceito – se tornam ainda mais dolorosos ao macularem a redoma dos Ughetto. A dor de Cesira relatando, ou a que Alain assume que sentiria ao fazê-lo, é pesada. Não só pelo fato em si, mas por ter sido ressuscitada para contá-lo. Seu neto queria ter ouvido todas essas histórias dela, então nos proporcionou o mais próximo disso que conseguiu.