Mostra Um Curta Por Dia 2025

Praia da Saudade

Um futuro ancestral

Por Pedro Sales

Praia da Saudade

Existe um mito de que a palavra “saudade” e seu sentido só existem na língua portuguesa. No gaélico, porém, o vocábulo “hiraeth” é tido como tradução exata. Etimologia à parte, fato é que essa palavra e seu sentido agridoce é prontamente assimilada pelo brasileiro que sente saudades de tempos melhores, pessoas queridas e qualquer outra coisa que lhe provoque aquele característico aperto no peito. Em “Praia da Saudade“, reflete-se um pouco sobre como esse sentimento é algo muito próprio nosso. O longa da diretora Sinai Sganzerla, filha de Helena Ignez e Rogério Sganzerla, detém-se sobretudo no resgate histórico não como saudosa lembrança, mas mecanismo para reflexão das transformações climáticas enfrentadas. O documentário também pontua como relações de exploração contra povos indígenas e a desigualdade fomentam o caos ambiental que se prostra diante de nós.

Este documentário certamente engana o espectador mais desinformado. Sem ler a sinopse, como de praxe faço, fui surpreendido pela “virada” que o filme dá. A Praia da Saudade que dá título à obra foi uma praia localizada na Urca, bairro do Rio de Janeiro. O documentário dá todos indícios de que examinaria historicamente as mudanças na praia e o processo de privatização que culminou no aterramento para construção do Iate Clube do Rio de Janeiro. E de fato isso acontece, mas a obra não se restringe a este momento. A mais de 300 km dali, está a praia de Atafona, localizada em São João da Barra (RJ), o novo foco visual da obra. Desde as décadas de 60 e 70, as águas do mar avançam para cima da cidade, colecionando ruínas e areia que avança para casas e estradas. Enquanto as imagens desses lugares aparecem na tela, juntamente de acervo pictórico que ostenta figuras, pinturas, fotografias e gravações antigas, a narração é conduzida pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e pelo neurocientista e biólogo Sidarta Ribeiro.

Nesse sentido, “Praia da Saudade” torna-se um título ambivalente e polissêmico, com vários sentidos, por abordar dois lugares fundamentalmente diferentes, mas que igualmente sofreram transformações. Pode-se apontar a praia do início do documentário, que de certa forma foi transformada pelo capital, deixou de existir por interesses econômicos, ou também apontar para Atafona, uma região que lida há pelo menos 50 anos com as mudanças climáticas e as intempéries da natureza. Saudades de quando não era assim, de quando se podia viver naquele lugar, de quando as ruínas eram chamadas de lar. O caráter reflexivo que se depreende dos planos e da narração espaçada é onipresente durante a rodagem, e o trabalho sonoro contribui para isso. Sinai Sganzerla usa o som como espinha dorsal mesclando trilha sonora a outros sons, como dos barcos, de espadas, de ritos religiosos indígenas e de religiões de matriz africana. Até o silêncio contemplativo é preenchido pela música, responsável por conduzir o espectador pelos pensamentos dos narradores

Da mesma forma que existe o contraste social pontuado pela Praia da Saudade e de Atafona, a cineasta também amplia o contraste para o campo histórico, primeiro em um aspecto visual e posteriormente narrativo. Os planos aéreos feitos com drones dão vez a pinturas de Debret e Taunay, imagens de arquivo e gravações da época. O visual se associa também às narrações de Guajajara e Ribeiro, que apesar de serem eixos narrativos um pouco distintos, são complementares. No fundo, ambos falam sobre a exploração e dominação como indutores de mazelas naturais. Assim, por muitos momentos o filme soa como um ensaio, uma profusão de ideias em um fluxo de consciência, mas sempre com as devidas associações visuais. Por este motivo, os comentários por vezes parecem dispersos, aforismos que não se conectam, pelo menos à primeira vista. Ao fim, as reflexões dos dois narradores se completam para o sentido maior do longa: a discussão das mudanças climáticas e das possíveis soluções para o futuro.

Praia da Saudade” é um documentário poético atento a questões muito caras à sociedade. Sinai Sganzerla costura os dois discursos dos narradores para refletir e provocar o espectador acerca da relação entre dominação e destruição ambiental que fomenta a mudança climática. Os pensamentos e divagações retomam a história brasileira e outras ainda mais antigas como a ruína dos astecas e incas associada imageticamente com as de Atafona. As imagens também habilmente articulam esse contraponto entre passado e presente. Mas de tudo, o que mais se sobressai é o som. A diretora, que inclusive assina o trabalho sonoro, preenche os silêncios da narração com a amálgama de sons, da trilha implacável “Also Sprach Zarathustra” à voz inconfundível de Rita Lee retornando a cantos mais antigos, indígenas, ancestrais. Portanto, a solução apontada por Guajajara e Ribeiro é rumar para um futuro ancestral, resgatar práticas antigas para manter a sobrevivência humana. Retomar o saber antigo para direcionar ao futuro.

3 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

  • Gostei da crítica fui ver o filme e acordei assim: 🌴PRAIA DA SAUDADE 🌊
    “Troco pra uma caneta mais macia…
    (escrevo antes de digitar)
    O que é o cuidado? O coletivo? Diante do que vivenciamos diariamente…?
    Acordar ainda com o emaranhado de informações de todo o dia de ontem mais o entrelaçado de imagens, sons e mensagens cumulativas do filme PRAIA da SAUDADE… Um acordar já acordado! Na não satisfação explícita do que se pode fazer diante de problemática gigantesca, insistir na sensibilização fazendo o mais que possível pra dar um recado resistente. Sendo didática e repetitiva por urgência, lidar com as pessoas, naufragar na expectativa e submergir na rotina do cuidar, da saúde de si e do que está mais próximo afetiva e circunstancialmente, o que determina ações conscientes.
    Legado a ser transformado, trabalho de delicadeza. Praia da Saudade presta-se ao cinema-indústria? Não, definitivamente.
    O que fica, nessa primeira mirada do filme da Sinai, como arquiteta de olhares sobre escombros de vidas, é a saudade do que não fomos, a utopia das ideias inacabadas que perduram sobre a existência à ser questionada, e encarada.
    Não é um filme que possa ter um feedback direto. Só as sensações de saturação, que imprimem como o pedido de socorro, que não ousamos, que se faz sentir no entendimento dessas dificuldades.
    Assistir a um filme vai de cada contexto, interno e externo. A leitura que se faz com o conhecimento, seja de uma descrição, de uma resenha ou de uma imagem-chamada, corresponde a cada olhar que conhece ou desconhece o cerne da autoria.
    Não é possível prever as reações e o que traduz o tempo inacabado dos conceitos. Fica o afeto, sem comentários técnicos, na hipótese de que seria essa a proposta-elo para a leitura audio-visual que se está podendo produzir nesse momento de administrar sequelas com sabedoria, nos encontros, convergentes ou divergentes, não se distinguindo figuras na linguagem.
    Na verdade não é o que se diz mas o que se apreende pra se elaborar, bem cuidadosamente.”
    Praia da Saudade estreou dia 11 na sala 2 do Estação Botafogo, disponível todos os dias, às 19h. Domingo, dia 14, no Cine Arte UFF.
    Marisa Aragão

  • Filme de mensagem importantíssima, mas extremamente raso. Pode ser que tenha sido intenção da autora, como forma de experiência narrativa, mas o filme não se aprofunda nas questões históricas abordadas, na cultura dos povos mencionados ou até mesmo na questão climática, havendo uma escassez completa de testemunhos ou artefatos de apoio à narrativa. A própria narração é escassa – com grande parte do filme sendo mera reprodução de imagens, vídeos e músicas (um convite à reflexão do espectador) – sem nenhum aprofundamento ou direção. De fato, é um filme importantíssimo, mas repete o discurso anti-capitalista/ecopolítico básico – sem grandes aprofundamentos.
    Ainda assim, recomendo assisitir, apenas modere as expectativas

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