Por Que Matei Minha Família?
Por que eu deveria me sentir culpado? Eu não os matei
Por João Lanari Bo
Netflix
“Por Que Matei Minha Família?” é uma minissérie israelense sobre um parricídio aterrador: o que leva um garoto de 14 anos de Ein Kerem, um bairro em Jerusalém Ocidental – onde, em tempos bíblicos, São João Batista nasceu e passou a infância – a se levantar no meio da noite e matar quatro membros da sua família, todos em pleno gozo do sono? Quais foram os pensamentos que passaram por sua mente naquela noite de inverno em 1986, quando pegou o rifle M-16 de seu pai, reservista do exército, e atirou nele, em sua mãe e em suas duas irmãs, à queima-roupa? O documentário thriller (sim, documentário), de Tali Shemesh e Assaf Sudri, não pretende chegar a nenhuma explicação lógica ou causal. Seria o garoto um psicopata de sangue frio? Um solitário adolescente vingando-se dos pais? Depois de assistir às quatro partes dessa história – o mistério continua prevalecendo. Investigadores, advogados, psiquiatras, vizinhos e amigos tentaram mergulhar nas profundezas da alma daquele menino, 35 anos após o massacre, mas esbarraram em uma muralha. “Eu não os matei”, disse ele, apresentando-se como mera ferramenta pela qual uma entidade estranha e verde tomava posse do seu corpo, e vozes mescladas com sinos de igreja o direcionavam para cometer atos horríveis. Isso, depois de assistir ao filme “Papillon“, com Steve McQueen e Dustin Hoffman – em uma cena, um dos presidiários revela a McQueen, sem muita ênfase, que foi parar “naquele inferno porque matei toda minha família”.
E “ele” manteve-se firme nessa versão dos acontecimentos, sem sinais de discórdia doméstica, problemas pessoais ou quaisquer outros catalisadores que pudessem fornecer pistas. “Ele” – seu verdadeiro nome nunca é revelado, em função da legislação israelense sobre menores – é descrito como extremamente inteligente e analítico antes do crime, e assustadoramente frio e casualmente indiferente depois. No dia fatídico se escondeu na casa do vizinho, mas foi rapidamente descoberto e confessou em seguida, com uma inabalável falta de emoção e sem derramar lágrimas, expressar tristeza ou arrependimento. Praticamente todos os entrevistados o descrevem como alguém – uma criança – cuja monstruosidade desapaixonada beirava o irreal. Surpreendentemente, essa irrealidade contaminou o processo judicial: embora os especialistas tivessem determinado que o menino estava apto a ser julgado, algo estava tão claramente errado com ele que a única solução satisfatória foi um acordo judicial que, no final, resultou em uma pena de apenas nove anos. Devido a uma apelação, por meio do advogado Yossi Arnon, “ele” foi libertado aos 21 anos. “Por Que Matei Minha Família?” conclui sua investigação com a revelação de uma ex-colega, que ficou surpresa ao topar com “ele” anos mais tarde durante aulas de windsurf, como parte dos requisitos esportivos da universidade. As filmagens caseiras do assassino adulto desfrutando desse passatempo aquático tem textura de material de arquivo: outras cenas são recriações dramáticas, interpoladas de forma a provocar uma indistinção na audiência, contribuindo para a atmosfera irreal da situação.
“Quando eles vão me deixar sair de férias?” e “o que vai acontecer comigo se eu me comportar bem?” foram algumas das perguntas que o garoto fez ao advogado, durante o processo. Psiquiatras e psicanalistas contorceram-se em hipóteses, mas ninguém encontrou uma argumentação satisfatória para pelo menos circunscrever as condições do parricídio – exceto o advogado Arnon, que diz ter uma possível explicação, mas que se recusa a revelar. A psicanálise pergunta: subjacente ao ato criminal, o que “ele”, o assassino, desconhecia sobre si? Quais saberes de si não pôde suportar? Seu ato caracterizou-se por um curto-circuito: aparente ausência de consciência e premeditação, sem fuga do local do crime. Foi um rompimento familiar, uma quebra no laço de filiação: algo que ocorreu em algum momento ao nível do simbólico, da linguagem, e se materializou funestamente, como nas tragédias gregas. O (anti) psiquiatra David Cooper, que escreveu um livro com título autoexplicativo – A Morte da Família – é radical:
Todos os assassinatos são assassinatos de família, seja literalmente dentro de uma família, ou em situações que replicam a família.
Depois de ser libertado da prisão, “ele”, graças ao advogado Arnon, recebeu o apartamento de seus pais, além da pensão e devidas compensações, e desde então desapareceu, protegido pela lei que proíbe a divulgação do seu nome. Após a estreia de “Por Que Matei Minha Família?” em Israel, veio à tona nas redes sociais que “ele”, com 49 anos, é casado, tem filhos e trabalha com finanças em uma posição sênior. Circulou também seu nome: com a repercussão, foi demitido do emprego.