Ponto de Virada: A Bomba e a Guerra Fria
Não está fácil: também quero uma bomba atômica
Por João Lanari Bo
O sucesso de “Oppenheimer”, público e Oscar, trouxe à baila um dos fantasmas mais resilientes da aventura humana sobre a Terra – a bomba atômica, ou nuclear, ou de hidrogênio, seja lá qual o atributo que se queira dar. A bomba atômica é, tout court, a possibilidade concreta de destruição total, ou quase total, do que se convenciona chamar de “civilização”. “Ponto de Virada: A Bomba e a Guerra Fria”, série em 9 caudalosos e densos episódios dirigida por Brian Knappenberger para a Netflix, não poderia ter escolhido melhor momento para se lançar no mundo do streaming: não apenas pelo filme de Christopher Nolan, mas também pelos ecos das abissais falas de Putin e adjuntos sobre possível emprego do arsenal nuclear russo, caso sintam-se ameaçados – a Rússia é uma fortaleza sitiada, um grande país, uma realidade que o mundo esquece por sua conta e risco.
Foram mais de 100 entrevistas, em sete países, além de incontáveis cenas de material de arquivo para construir esse imenso painel – claro, feito a partir do ponto de vista ocidental, ou “atlantista”. Não se sabe como seria o produto simétrico produzido por um olhar russo, ou “eslavófilo”. Refletir sobre a trilha histórica é uma tarefa complexa, sujeita a manipulações e reescrituras. Knappenberger segue uma via liberal, no sentido que a palavra tem em seu país, algo próximo a centro-esquerda. Seu portfolio de produções é extenso: além de outra série ambiciosa, “Ponto de virada: 9/11 e a Guerra ao Terror”, destaque para “The internet own boy”, feito em 2014, que narra a inacreditável história de Aaron Swartz, menino-prodígio da era digital que foi tragado pelo sistema judiciário. Para falar da bomba, Guerra Fria – e, em última análise, de Vladimir Putin e a invasão da Ucrânia – a série investiga personagens, cenários, geopolítica e, sobretudo, contradições.
Sim, contradições. Agora me tornei a Morte, o destruidor de mundos: as imagens de J. Robert Oppenheimer citando Bhagvad Gita entram no projeto, talvez a contradição matricial, a expressão do cientista que se desviou do propósito iluminista da ciência e descambou para as trevas da morte. Mas não para por aí: a propaganda nos EUA que reduziu os japoneses a sub-humanos, facilitando a decisão de Truman – ele pensava que Hiroshima era uma instalação militar – de autorizar a bomba, apoiado pela (seduzida) opinião pública. E mais: como a bomba significou muito mais do que o fim da guerra no teatro asiático, significou uma radical tomada de posição estratégica de liderança mundial, que o establishment político-militar norte-americano almejava no pós-guerra.
E a Guerra Fria? “Ponto de Virada: A Bomba e a Guerra Fria” esmera-se em detalhar, privilegiando a construção do Outro assustador, o regime russo-soviético. Da espionagem ao Red Scare de Joe MacCarthy, aos julgamentos do casal Rosenberg, aos testes secretos de armas nucleares em ambos os lados, à formação de enormes conglomerados de inteligência e defesa, às operações secretas da CIA (Irã e Guatemala) e à crise dos mísseis em Cuba – todas as variantes são devassadas, sem apelações sensacionalistas tão frequentes nas intermináveis produções estilo History Channel. A objetividade da narrativa documental sustenta-se na edição de imagens e depoimentos, contrastando, até onde é possível, visões e conclusões. Vários entrevistados russos e ucranianos comparecem, críticos em relação à ascensão de Putin e sua insaciável escalada de poder.
Não se sabe, insistindo, como reagiriam os atuais ideólogos do Kremlin a interrogações sobre tudo isso – sabe-se, entretanto, quais são as posições públicas de Putin sobre a Ucrânia, sobre a ameaça da OTAN, sobre a soberania e a segurança de seu país. São inúmeras as falas e imagens do líder russo elencadas na série, muitas conhecidas e outra nem tanto, apesar de muito citadas – como a famosa Conferência de Munique, em 2007, em que Putin prefigurou sua atual postura anti-Ocidente, incluindo o abandono de boa parte dos compromissos de desarmamento e a própria guerra da Ucrânia, que já completou 2 anos. Foi uma tacada audaciosa, sem dúvida: mas a série mergulha também em situações desconfortáveis para ele, como a relação com a Ucrânia após a Revolução Laranja, de 2004, e – pior – os protestos em 2011 e 12 contra sua volta à Presidência, duramente suprimidos.
Não faltarão leituras a denunciar um parti-pris a favor da Ucrânia – Zelenski é um dos entrevistados, suas falas parecem dirigir-se a uma audiência de fund raising. “Ponto de Virada: A Bomba e a Guerra Fria” alcança 10 horas de duração, acumulando contextos particulares e tentando articular uma abordagem geral. Por exemplo, um evento como Maidan – onda de manifestações e agitação civil, na Ucrânia, entre 2013 e 2014, que levaram à queda do governo pró-Rússia, visto por alguns como “golpe” e emancipação democrática por outros (a maioria dos ucranianos) – é dissecado em suas vicissitudes específicas e contextualizado no quadro geral das relações entre a Rússia e a Ucrânia.
A Guerra Fria, enfim, parece não ter terminado, ao contrário do que imaginaram Ronald Reagan e Mikhail Gorbatchov. Não está fácil.