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Ponto de virada: 9/11 e a Guerra ao Terror

Não está fácil: o mundo pós-verdade

Por João Lanari Bo

Netflix

Ponto de virada: 9/11 e a Guerra ao Terror

Brian Knappenberger é um documentarista premiado: seu formato investigativo encontrou na forma serializada um maná inesgotável, desta feita com a minissérie “Ponto de virada: 9/11 e a Guerra ao Terror” – cinco episódios que começam em 2001, com o ataque às Torres Gêmeas e o Pentágono, seguido das guerras no Afeganistão e Iraque, e culminando com a confusão final que testemunhamos nas cenas no aeroporto de Cabul, em 2021. O realizador tem algumas joias premiadas no seu curriculum, entre elas “The internet own boy”, feito em 2014, que narra a inacreditável história de Aaron Swartz, menino-prodígio da era digital que foi tragado pelo sistema judiciário (o fato de ter acontecido na terra do tio Sam, que sabe valorizar esses talentos, é que torna a história inacreditável). Maná: alimento produzido milagrosamente, diz a Bíblia, fornecido por Deus a Moisés durante a travessia no deserto rumo à terra prometida. De 2001 para cá foi uma sucessão de desatinos que configurou, nos EUA, uma política externa de pretensões hegemônicas a qual, tudo indica, bateu no teto. Extremamente informativa e contando com depoimentos raros e convincentes, a produção de Knappenberger também tem os seus limites – faltou aquele elo que pode ser resumido na famosa sentença de Carl von Clausewitz, o grande estrategista militar prussiano do século 19 – “a guerra é meramente a continuação da política por outros meios”.

Sim, porquê o que faltou na ideologia liberal do diretor – liberal no sentido americano, ou seja, algo como centro-esquerda – é ter ido fundo nas contradições que embasaram as decisões de George W. Bush, auxiliado pelos asseclas Donald Rumsfeld e Dick Cheney, responsáveis por desmontar a institucionalidade da vida política nos Estados Unidos, obviamente conectados com interesses ligados a petróleo e indústria bélica. “Ponto de virada: 9/11 e a Guerra ao Terror” segue uma linha cronológica, que pode ser percebida pelos subtítulos dos episódios: “Alerta vermelho”, “Um lugar perigoso”, “O lado sombrio”, “A boa guerra” e “Saída do Afeganistão”. Há uma perversa coesão em tudo isso: o mérito maior da minissérie é nos convencer desse fato insofismável, evitando, com sutileza, cair em teorias conspiratórias improdutivas e irracionais. Mas também houve, é inegável, uma incrível negligência dos órgãos de segurança norte-americanos – FBI, CIA e NSA – que não foram capazes de decodificar os vários sinais de que um grande evento se anunciava no horizonte, o 9/11. Para dar um exemplo, bem documentado na minissérie: custa crer que os alertas encaminhados a Washington pelo delegado do FBI em Los Angeles – sobre um surto inesperado de alunos de origem árabe interessados em pilotar jatos comerciais, um deles tendo comentado que “decolar e aterrissar não interessa, quero saber como manter o avião no ar” – não tenham desencadeado ações mais efetivas de rastreamento e investigação.

Para os adeptos das hipóteses explicativas conspiratórias que sugerem a existência de duas ou mais pessoas – ou até mesmo uma organização – obcecadas em acobertar evidências, tal dado é um maná: afinal, quem ganhou com o ataque coordenado de 11 de setembro de 2001, sem dúvida a mais espetacular operação terrorista da era moderna, marco do novo milênio, o século 21? Uma rápida operação mental indicaria, sem vacilar, que foi Bush e sua entourage, correligionários, militares, indústria de armamentos, petróleo – Bush se reelegeu com facilidade em 2004, depois de uma polêmica vitória sobre Al Gore no ano 2000, no seu primeiro mandato, obtida no “tapetão” da Suprema Corte. Em 2004 o discurso bélico de vingança contra a Al Qaeda foi instrumental para vencer a eleição, mesmo com o país dividido (muita gente era contra as guerras). Bush ganhando, foi mais dinheiro para pagar o alto custo das operações militares, e o necessário apoio no Congresso mais fácil de conseguir. De alguma maneira, portanto, esse grupo político parece ter “deixado” acontecer o tenebroso 9/11.

Mas não nos deixemos cair em tentação: esta pode ser uma conclusão precipitada. Em outro episódio, “Ponto de virada: 9/11 e a Guerra ao Terror” detalha a gênese do “Patriot Act” – legislação que permitiu, entre outras medidas, a órgãos de segurança e de inteligência dos EUA interceptarem ligações telefônicas e e-mails de organizações (e pessoas) supostamente envolvidas com o terrorismo, sem necessidade de qualquer autorização da Justiça, sejam elas estrangeiras ou americanas – e a sua posterior sanção em 2011 por Barack Obama, que manteve os mesmos dispositivos do Ato até 2015 (neste ano, o Congresso aprovou o “USA Freedom Act”, mais brando um pouco, mas ainda com vários dispositivos do “Patriot Act”). Para completar, Knappenberger disseca a Guerra do Iraque, deflagrada em 2003, inteiramente baseada em fake news – nunca foram encontradas as “armas de destruição de massa” que se alegava – e que tirou vidas de centenas de milhares de pessoas, a grande maioria civis. Bush e seus assessores mentiram compulsivamente para justificar a invasão e arrastaram um patético grupo de líderes mundiais conservadores nessa aventura, entre eles pelo menos um governante que se dizia liberal de esquerda, o Primeiro-Ministro inglês Tony Blair (o Presidente da França, o direitista Jacques Chirac, foi contra): a invasão e a desestabilização que se seguiu acabou preparando o terreno para a emergência do Exército Islâmico, o consórcio de grupos radicais que aterrorizou, na sequência, o Oriente Médio.

O filósofo Wittgenstein dizia que “parte da verdade, também é verdade”: a despeito das lacunas, a minissérie é razoavelmente honesta, conta “parte” da verdade sem prejudicar o “todo” da verdade. Um aspecto inquietante aponta para o futuro: o desmonte institucional que Bush promoveu teria sido fundamental para a ascensão de Trump, com sua (pretensa) inserção antipolítica tradicional (no Brasil, o método também frutificou). Chega a ser irônico que o mesmo Bush, no vigésimo aniversário do ataque às Torres, tenha condenado “extremistas violentos no exterior e extremistas violentos em casa”, referindo-se ao assalto ao Capitólio, em janeiro de 2021. No ato, Trump vestiu a carapuça e revidou: “Bush liderou uma presidência fracassada e pouco inspiradora. Ele não deveria estar ensinando nada a ninguém”. O problema, para a imensa maioria do planeta que vive na periferia desse “diálogo” – na falta de uma melhor palavra – está em outro lugar: é como sobreviver aos caprichos insanos desses enlouquecidos de poder.

3 Nota do Crítico 5 1

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