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Poesia pela Revolução

Marx vai a Bollywood!

Por João Lanari Bo

Poesia pela Revolução

Poesia pela Revolução”: este é o título do longa-metragem dirigido pelo indiano Venu Udugula, em exibição na Netflix, cuja sinopse é a seguinte: Cativada pelos poemas de um guerreiro rebelde em uma missão mortal, uma jovem ingênua, porém ousada, entra de cabeça em uma revolução. Trata-se de um enredo romântico a outrance, de uma jovem ingênua e ousada, mas sobretudo obstinada, que percorre cidades e florestas em busca do seu eleito, ignorando alertas e risco de vida, atravessando e superando intempéries – até finalmente encontrar-se face a face com o líder (e poeta) guerrilheiro. Conforme o figurino bollywoodiano, ele é um dos galãs mais requisitados pelo público – Rana Daggubati é o seu nome. Ela, a obstinada, é Sai Pallavi, atriz de sucesso em caudalosas e melosas histórias de amor. Neste caso, entretanto, sua paixão ardente tem como pano-de-fundo …uma guerrilha maoísta!

Sabemos que a Índia é um país de dimensões de difícil compreensão para a combalida razão ocidental. De acordo com a ONU, sua população alcançou 1,428 bilhão de habitantes, tornando-se ligeiramente superior à da China, que é estimada em 1,425 bilhão. A diversidade social, étnica e linguística desafia os exegetas geopolíticos. Em termos de produção cinematográfica, a indústria indiana é provavelmente a maior do mundo – nesse mercado, as produções norte-americanas têm de se contentar com fatias minoritárias. Os filmes produzidos em Bollywood são, via de regra, musicais: canções enfatizam climas dramáticos e ajudam a compor a narrativa. Normalmente as músicas são lançadas antes dos filmes, para gerar expectativa e interesse na audiência. É o caso de “Poesia pela Revolução”, que conta também com numerosas sequências de ação e violência.

Vennela (Sai Pallavi) nasce numa noite de lua cheia. Teimosa na infância, ela é criada pelos pais para ser independente e educada, desde que se case com alguém de uma família amiga. Por acaso, ela cruza com a poesia de Ravanna (Rana Daggubati), o maoísta que escreve odes inflamadas à revolução. A absorção desse romantismo revolucionário convence-a, por alguma razão, de que não há poder maior no mundo do que o amor: segue-se a jornada épica para conhecê-lo, na esperança de passar o resto de sua vida com ele. Tudo isso com muita música, câmera lenta de gosto duvidoso, fotografia de cores exuberantes e exaustivas, todos os recursos melodramáticos possíveis para contar uma história de amor…impossível. Ravanna recusa in limine a proposta de Vennela, em nome do compromisso com a Revolução: não há espaço para afetos quando o projeto de vida é libertar o povo da opressão da classe dominante.

Marx não se casou com Jenny? E Lênin com Krupskaia? questiona ela, diante da indecisão do astro rebelde. É como se, num átimo de tempo, um princípio de realidade contamine a narrativa. Pois “Poesia pela Revolução”, confessa o diretor, baseou-se em fatos reais: uma garota com formação semelhante a Vennela, que enfrentou um destino semelhante após abandonar família em 1992 e juntar-se aos revolucionários Naxal, com final trágico em circunstâncias misteriosas. A insurgência naxalita é um conflito que se iniciou em 1967 e segue ativo, embora reduzido: estima-se que tinha entre 6.500 e 9.500 guerrilheiros em 2013, a maioria equipados com armas ligeiras. De inspiração maoísta, os naxalitas têm como alvo a polícia e funcionários do governo no que afirmam ser uma luta por direitos à terra e mais empregos para trabalhadores agrícolas e pobres de castas inferiores. E espalhados pelo país – em 2007, os naxalitas estavam presentes em metade dos 29 estados da Índia, inclusive onde se passa o filme, Telengana. O termo Naxal vem da aldeia Naxalbari, em Bengala Ocidental, onde ocorreu o levante de 1967.

É uma realidade e tanto, mais uma no cenário multifacetado dessa nação – ou nações – de raízes profundas. O estado de Telangana é também cenário de cenas fulgurantes do Mahabharata, o famoso épico indiano que narra eventos ocorridos entre o ano 1000 e 900 antes de Cristo – datas aproximadas, descobertas arqueológicas recentes sugerem datas ainda anteriores, entre 2000 e 1500 AC. A obra estabelece métodos de desenvolvimento espiritual de complexidade e alcance comparáveis a Bíblia cristã, e são firmemente adotados pelo hinduísmo moderno. Em alguns momentos, nossos protagonistas chegam a engajar-se em debates entre essa tradição milenar e a consciência libertária dos Naxalitas. Mas são poucos: prevalece, na maior parte, a pulsão romântica intransigente de Vennela.

Marx, enfim, chegou à terra do Mahabharata.

2 Nota do Crítico 5 1

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