Poemaria
Sem precisar de propósito
Por Vitor Velloso
Festival de Gramado 2024
Navegando como que sem destino algum e pretensão de chegar a qualquer conclusão sobre seu objeto ou sobre si, “Poemaria”, de Davi Kinski, é uma bonita homenagem à palavra e seu poder de tocar as pessoas de forma tão distinta quanto inequivocamente errática. Não por acaso, a estrutura se apresenta de forma cíclica, por vezes até repetitiva, com um depoimento de uma pessoa e uma leitura, mas o que faz o documentário funcionar, ainda que com momentos de fragilidade, é a paixão que as pessoas demonstram sobre o assunto. Claro, há depoimentos mais interessantes, outros que forçam alguma intelectualidade mais performática e menos apaixonada, mas a condução descontraída, com a exposição dos equipamentos e pessoas reagindo ao fundo, transforma esse ritual menos programático e mais íntimo, mesmo que em alguns momentos pareça engessado nessa fórmula (com uma tentativa de ser mais informal, que nem sempre funciona).
Não por acaso, há uma certa insistência em mostrar o ambiente do set de gravação como um espaço de amigos, descontraído, onde os convidados podem desfrutar de alguma bebida alcoólica e dividir risada com as pessoas da produção. Contudo, essa insistência em reforçar que no momento do registro não houveram grandes formalidades, acaba burocratizando o próprio filme, já que retorna diversas vezes a essa informação, como que para retirar o peso de ser uma entrevista. Mas ainda assim “Poemaria” tem bons momentos, justamente por permitir que seu convidado possa se expressar de forma livre e com pouquíssimas interferências, moldando a obra a ser multifacetada e plural, onde qualquer lugar comum entre os personagens está ligado à centralização do objeto do documentário.
Há uma clara tentativa de direcionar parte da obra para um articulação política, especialmente pelas escolhas de seus personagens, mas isso nunca é refletido de forma direta ou objetiva, ainda que o espectador que acompanhou o cenário político dos últimos anos reconheça facilmente algumas dessas escolhas. Contudo, o fato de não ser um ato político de forma incisiva, permite a obra se desamarrar de qualquer compromisso, realmente criando um movimento contínuo e sem objetividade ou propósito, o que neste caso funciona particularmente bem, já que a transição entre os depoimentos torna-se ainda mais fluída, sem interrupções ou pautas que poderiam demarcar algum momento durante a projeção. Existe uma fala em específico que é reveladora do caráter material, e não apenas hermético, que a poesia possui na vida dessa pessoa, que realmente se destaca das demais, pois toca em um ponto sensível da realidade brasileira, em seu caráter social, político, econômico: a fome. O leitor que já teve contato com a obra, sabe qual a cena e quem é o personagem.
“Poemaria” não parece ter pressa em suas transições, nem desenha um objetivo para sua conclusão, parece apenas organizar os depoimentos e manter todos os seus personagens cada vez mais íntimos do espectador ao longo de sua curta duração, um mérito inegável que possui pequenos declínios de ritmo por conta de algumas performances mais descoladas em comparação com outras. Porém, são questões difíceis de balancear, já que dizem respeito às personalidades de cada um.
Assim, o longa parece sintetizar tanto uma experiência particular com um objeto tão subjetivo, que reduz qualquer funcionamento exterior à sua própria projeção. E muitos poemas ali presentes se manifestam de maneiras tão distintas entre seus personagens, que a própria ordem de aparição não soa como uma escolha pré-definida e sim por suas introduções na “cena”. “Poemaria” se desgasta com a própria projeção, pelos altos e baixos, por ter um ritmo fragmentado pelo tempo de tela de cada depoimento, mas é particularmente eficiente em encantar seu espectador e convidá-lo a revisitar o mundo dos poemas.