Pessoas Humanas
Custa os olhos e tempo
Por Pedro Sales
Ao longo dos anos, gêneros como thriller, ação e suspense quase sempre foram marginalizados pela crítica, em detrimento do prestígio dado ao drama. Entretanto, isso não significa falta de qualidade. Como em todos os gêneros cinematográficos, há filmes bons e ruins. Nomes como Michael Mann, James Cameron e George Miller, por exemplo, realizaram excelentes obras nesse campo. Mais recentemente, Chad Staehlski, da saga “John Wick“, coleciona asseclas com quatro longas muito bem filmados e coreografados. Mas de onde vem a resistência contra a ação? Se por um lado existem diretores dispostos a fugir das amarras e clichês, do outro há uma grande maioria que só sabe dirigir seguindo tal cartilha. “Pessoas Humanas” é um exemplo deste último grupo. A coprodução entre Brasil, Espanha e Panamá, dirigida por Frank Spano, reproduz o que há de pior no gênero, em um filme que desafia o espectador a levá-lo a sério.
Uma mulher acorda na banheira, nua e com uma cicatriz na barriga. Aos poucos, ela se lembra da noite anterior e da ficada com um cara qualquer, no entanto demora um pouco até perceber que foi vítima de tráfico de órgãos. James (Luis Fernández) foi o mandante do crime. O verdadeiro chefão, acima dele, precisa de um fígado novo. O da garota não serve, é ruim. Assim, James precisa sair dos Estados Unidos e encontrar um novo corpo em Medelín, na Colômbia. A trama simples e que, sim, tinha potencial, torna-se um completo desperdício nas mãos de Spano. Em primeiro lugar, evidencia-se a inexperiência do realizador, que também assina o roteiro. A encenação pobre explora pouco da dramaticidade das situações propostas. Ao mesmo tempo que todos os diálogos são completos clichês. Parece que o diretor assistiu a cinco filmes de suspense/ação – ruins, por sinal – e copiou as linhas. Em certo momento, parafraseia até “O Poderoso Chefão” (1972) – este é excelente –, com a clássica fala: “Eu farei uma proposta que ele não pode recusar”. O que soa completamente caricato e artificial.
A artificialidade de “Pessoas Humanas“, por sua vez, é reforçada a todo momento. A escolha do inglês como língua para o filme, a infantil recusa do protagonista em falar espanhol e a mediocridade da direção remetem aos filmes feitos exclusivamente para TV, como dos canais por assinatura SyFy e Lifetime. Além disso, quando um brasileiro aparece no filme, o criminoso João (Roberto Birindelli), a situação consegue piorar drasticamente, se é que era possível. Antes de explicar o porquê, proponho o seguinte exercício: pense em todos os estereótipos brasileiros. Pensou? Com certeza veio à mente coisas como: futebol, samba, mulher, caipirinha. Aparentemente, para Frank Spano e para o co-roteirista Pedro García Rios também. João é apresentado vestindo camisa verde amarela e corrente de ouro, jogando futebol no videogame e, em momentos de tensão, toca samba com uma caixinha de fósforo. A representação é tão ruim que chega a ser risível, mas não se aproxima da máxima cinefílica do “tão ruim que é bom”.
Caso os problemas do longa se restringissem a representações culturais questionáveis e diálogos mal escritos, seria menos pior. Contudo, a estrutura do roteiro, enquanto narrativa, também é deficitária. A questão do tráfico de órgãos, por exemplo, é tratada como mera transação, não há espaço para dramaticidade ou conflitos internos éticos nos personagens. Dessa forma, a rodagem jamais impacta, até mesmo pela atuação mecânica e quase inexpressiva do protagonista, inclusive nos momentos em que o roteiro exige entrega emocional. Spano também demora muito para estabelecer a urgência da missão. Na metade final do longa, ele demonstra que a consequência para a não realização da tarefa é a vida do filho de James. Outro ponto fundamental no filme é desafiar a suspensão de descrença. Naturalmente, o espectador deve se desprender da verossimilhança para apreciar uma obra, seja de qual gênero for. Muitas vezes, fazem até piadas em relação a isso: “o filme x é a maior mentirada”, “isso nunca aconteceria”. E é aí que reside a tal “magia” do cinema. Só que, por outro lado, é bem difícil aceitar qualquer coisa principalmente quando a obra tenta evocar realismo. Aqui, o conflito vem da artificialidade dos diálogos e das ações pretensamente realistas.
“Pessoas Humanas” é uma obra com aparentes dificuldades de se estabelecer como suspense, ação, thriller e, às vezes, drama. O desastre só não é completo em razão da direção de fotografia que explora muito bem os espaços. Os planos aéreos, apesar de repetitivos, efetivamente pontuam a mudança geográfica Colômbia-Estados Unidos. A câmera consegue deixar as cenas minimamente interessantes com movimentação constante e iluminação precisa, ela se aproxima e se afasta em dollys e acompanha os personagens em alguns planos sequências. Uma boa fotografia, porém, não é capaz de disfarçar tamanha mediocridade do projeto. Por mais que seja inventiva, como as panorâmicas com grandes angulares, a encenação é ruim. Nas cenas de negociação, tudo é inchado e embalado em clichês, nas de ação é pior ainda. As cenas de morte de tão ridículas tiram gargalhadas. Se a personagem inicial pagou a noite, involuntariamente, com o fígado, a rodagem custa ao espectador os olhos e o tempo. O que resta é rir. Por fim, Frank Spano como diretor ainda é imaturo, não possui voz própria e reproduz o que há de pior no gênero. Trata-se, em suma, de um filme que só poderia funcionar como paródia de si mesmo.