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Os Sonâmbulos

Sobre autômatos e política

Por Julhia Quadros

Os Sonâmbulos

Assistir a “Os Sonâmbulos” (2018), dirigido por Thiago Mata Machado em 2020 é, sem dúvida, uma experiência incrível. Em um momento em que nos confrontamos com uma realidade política e sócio-econômica alarmante, complicada e triste, marcada por uma doença sem cura, a COVID-19, que está dizimando boa parte da população mundial e pela ausência de um projeto consistente do governo para resolver o problema de saúde ou muitas outras questões de muitas ordens da estrutura do país, as pessoas se tornam tristes, apáticas, desesperançosas e sem forças para lutar contra o ambiente ou, simplesmente, para se posicionar contra as condições opressoras. Vê-se, diariamente, pessoas morrendo, milhares no país, tanto pessoas conhecidas como Aldir Blanc, Daniel Azulay e Flávio Migliaccio (ainda que não tenha sido diretamente pela doença, a perda contribuiu para o cenário de tristeza e desamparo), quanto diversas pessoas anônimas, que perdem suas vidas em leitos sem conseguir respirar ou mesmo profissionais de Saúde, que estão lutando para salvar pacientes e contraem a doença. Neste cenário o brasileiro se encontra desamparado, descrente, desejando, inclusive o Fim os Tempos para que possa escapar da revolta, do medo, da negligência do governo e de todo este cenário tenebroso que se apresenta nos fins de maio de 2020. É esta realidade de horror que já está anunciada no filme Os Sonâmbulos, realizado em um momento de crise política e desilusão após a vitória de Jair Bolsonaro em 2018.

Com um roteiro de Francis Vogner e Tiago Mata Machado, “Os Sonâmbulos” trabalha com a constante presença da morte, o fatalismo, o pessimismo, com constantes sugestões de suicídios, violências e claustrofobia. A obra retrata um grupo de jovens que amam a vida, mas desprezam a própria vida, frustrados com o mundo que os cerca e dispostos ao sacrifício, vagam em um mundo sombrio insatisfeitos com tudo o que o mundo os apresenta. E, próximo à morte iminente e à ausência de vida no viver, é retratado o amor, como uma forma de experienciar os sentimentos no mundo da apatia. Isto é perfeitamente cabível no horizonte de tristezas e desilusões previsto em 2018, em que um candidato com ideias de extrema direita chega ao poder, um período de muita tristeza e de consciência de perdas no futuro; bem como o Capitalismo e o seu ritmo cada vez mais competitivo, acelerado, impessoal e superficial vinha há décadas transformando as pessoas em meros autômatos. As personagens da obra vagam carregando mágoas e dores de se verem como engrenagens de um sistema, como meros números na sociedade, cientes de que até suas noções de ego e individualidade dizem mais sobre o meio social do que sobre si mesmos. Por isso, são capazes de definir a personalidade que gostariam de ter, apenas pelo fato de ser mais interessante que seus verdadeiros eus; carregam contradições em suas constituições pessoais, que são analisadas ao longo do filme.

A fotografia, de Fernando Lockett registra as imagens de uma forma mais escura, com sombras demarcadas, planos detalhes, close-ups e geralmente, em ambientes noturnos ou pouco iluminados, reforçando o conceito de abandono e solidão frente ao mundo que se apresenta. Há alguns planos de fogo, tochas e bandeiras queimando, evidenciando a revolta, as ideias, a vontade de luta e, também, o impulso se que esvai, a fumaça, que recobre a cidade, mas, porém, sem alterá-la de fato ao fim do incêndio. Ou a bela, triste e poética imagem dos corpos nus sendo marcados como gado, anônimos, iguais e tratados como mercadoria; idênticos, como em um ballet em que o corpo de baile se apresenta. As imagens confirmam o estado de sonambulismo ao longo do filme, como é dito: “o sono pode ser mais desejável, por isso, todos dormem. O país inteiro dorme e os que gritam não estão mais acordados do que os que se entregam à ausência”.

A montagem, de Alice Furtado e Luiz Pretti, trabalha muito bem com a utilização das vozes e das imagens, em que os textos constroem boa parte da narrativa, sendo, porém, confirmados, exemplificados, contraditos os desafiados pelo que é representado na tela. Alguns planos e sequências são bem longos, de modo a demarcar a individualidade de cada personagem, ou, mesmo, a personalidade que este resolvera representar, como interagem com o mundo ou consigo, mesmos, muitas vezes, estando evidente que o ambiente pouco tem a oferecer às muitas pessoas. Ao mesmo tempo em que estas são representadas com planos muito fechados, aumentando a sensação de claustrofobia, os planos mais abertos os confrontam com o esvaziamento de sentidos e de algo de autêntico. Isto ocorre em um embate constante, cuja relação é ampliada pela música de Juan Rojo e Pedro Durães, quem compõe a maioria das músicas presentes na trilha sonora, há, também, obras de Johann Sebastian Bach e Franz Schubert, com seus trabalhos que remontam aos períodos do Barroco e do Romantismo, trazendo a densidade sentimental que falta aos personagens retratados, como se a verdadeira autenticidade consistisse na apatia e no “sonambulismo” social, sendo impossível ser ou sentir algo de verdadeiro intencionalmente e esta fosse apenas uma possibilidade existente nos pormenores, no acontece durante e ao longo da vida desproposital que vivemos. Isto ocorre, sobretudo nas cenas de amor e sexo, retratadas com estas composições ao fundo, como se nestes momentos, o mundo se desnudasse por completo, também, de suas ambições e falsas personalidades construídas.

Desta forma, “Os Sonâmbulos” de Tiago Mata Machado aborda diversos conceitos fundamentais sobre a relação entre o Humano e sociedade, em que esta interfere diretamente naquele, tornando-o incapaz diante dos problemas representados e vividos, criando um ambiente sufocante do qual ele não consegue escapar; ou pior, está tão prisioneiro que nem mesmo consegue identifica-lo por completo ou se manifestar contra de qualquer forma. É comum e proveitoso que a arte e a política se relacionem entre si e o filme é uma resposta a um mundo que se sente cansado diante de problemas que pareciam já ter sido resolvidos, ditaduras, golpes e questões que se repetem continuamente ao longo da História do Brasil, de uma forma incansável, transformando as pessoas, que poderiam ou deveriam expressar algo contra tudo em sonâmbulos, que sabem até mesmo o grito é tão “ausente” quanto o sono. O ambiente de tristeza e niilismo ao longo do filme é incômodo, porém necessário e completamente pertinente para interpretarmos, inclusive, o mundo de 2020. Seríamos nós sonâmbulos apaixonados pela vida, mas vivendo em um mundo completamente desmotivante? Teríamos ainda alguma força para lutar e teria restado alguma pequena faísca da chama que se apaga? É curioso levantarmos estas questões ao assistir a “Os Sonâmbulos”, que impressiona pela forma, mas, principalmente pelo conteúdo. Vencedor do 51o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – Melhor Filme Mostra Caleidoscópio.

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

  • Uma bela bosta isso sim. Não bastasse tudo isso q vc cita como “pano de fundo” perdi 2h da minha vida assistindo essa porcaria… aff…

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