Os Idiotas
Quem são os idiotas, afinal?
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 1998
Idiota: do latim idiota, originado do grego antigo idhiótis, “um cidadão privado, individual”, usado depreciativamente na antiga Atenas para se referir a quem se apartasse da vida pública.
“Os Idiotas”, dirigido por Lars von Trier em 1998, foi filmado no mesmo ano de outra referência emanada do Manifesto Dogma 95 – “Festa de Família“, realizado por Thomas Vinterberg – e segue à risca, também, os preceitos formulados por von Trier e Vinterberg. Locações sem artifícios cenográficos, câmera na mão, proibição de ações superficiais (assassinatos, armas), interdição de iluminação especial e filtros, som produzido junto com imagens, e proibição de afastamento temporal e geográfico: o filme se passa aqui e agora. Um grupo de pessoas adultas se reúne com o objetivo de experimentar lapsos de comportamento, perda de controle físico ou emocional, e assim provocar situações embaraçosas e inusitadas. Como repetem os personagens ao longo do filme – trata-se de extrair o idiota de seus respectivos interiores psíquicos, e purgar-se dos moldes sociais impostos nas relações humanas. Logo no início dois deles enervam o garçom e o público de um restaurante elegante: no clima farsesco instaurado, uma solitária e perdida cliente se apega a um dos idiotas e, malgrado sua aura melancólica, adere pouco a pouco ao clima de exultação liberadora daquela pequena comunidade de insensatos.
Karen é a décima-primeira e última pessoa a se juntar ao grupo, e torna-se, com sua presença misteriosa e sofrida, uma excentricidade fundamental. Sua dor contrapõe-se ao lado brincalhão do experimento. “Os Idiotas” evolui numa linha tênue e delicada: ofensivo e quase irresponsável, o filme sustenta-se na empatia que atores e atrizes conseguem estabelecer com a audiência, com turbulências e excessos, até mesmo um melodrama no final. A direção é impecável, no contexto dessa catarse grupal: conhecido pela dureza e mesmo rispidez que eventualmente aplica ao teatro de marionetes que manipula – assim ele se refere ao elenco – von Trier não é um control freak, mantem-se aberto a improvisações que nascem da tensão do set. Ao representar deficientes mentais, é inevitável que surjam situações que escapam à mise-en-scène, perigosamente. No documentário making of sobre o filme – intitulado, a propósito, “Os humilhados” – ouve-se a voz do diretor falando com um ator furioso: você só precisa ser humilhado como os outros. A questão, para ele, é segurar o foco no clima que envolve a opção temática, e não se deixar distrair pelas especificidades da história.
Os loucos, ou seja, os idiotas, são todos aqueles que não servem para o trabalho: são retirados, por isso, do convívio social – este é o senso comum subjacente ao filme. Os idiotas não só cometem excessos – são um excesso. Cometem excessos, porque lhes falta algo: razão, sensatez, bom senso, equilíbrio ou normalidade. Toda uma ciência foi desenvolvida para operacionalizar essa segregação – um não-idiota, portanto, seria alguém com capacidade racional sensata. O excesso, a falta de controle dos pensamentos, das condutas e das paixões, aproximam perigosamente a idiotice de ações moral e socialmente indesejáveis. Em “Os Idiotas”, esse comportamento pode desaguar em sexo explícito, ou separações dramáticas, ou dolorosos processos de conscientização da necessidade incontornável de retornar à razão sensata. Lars von Trier reproduz nesse filme um certo espírito transgressor dos anos 60, vocalizado num psicodrama que tem como princípio levar tudo a extremos.
Mas, quem são os idiotas, afinal? Ingenuamente, os personagens falam diretamente à câmera sobre seus sucessos e fracassos, assumindo personas que representam forças e fraquezas internas. Acreditam que, ao ativar seu “idiota” interior, tornar-se-ão capazes de repudiar as convenções e preconceitos burgueses e exercer suas vidas de forma mais autêntica e honesta. À medida que se aprofundam em seu projeto, entretanto, fica claro que as mesmas convenções sociais continuam a limitar suas existências. Ambição, amor, luxúria, disputas, necessidade de aceitação – todas essas opções são inevitáveis.
No final, em meio à desagregação coletiva, Karen, a tímida excêntrica, confessa que viveu seus dias mais felizes naquela loucura grupal. Retorna à sua casa para encarar os membros de sua família e deparar-se com o núcleo traumático que a atormenta. Nesse momento de intensidade dramática, retornamos todos ao realismo cinematográfico, com seus dispositivos de representação de tristeza, compaixão, desespero. Humilhados e ofendidos, não restam saídas ou atalhos fáceis: viver é aprender a sofrer, como informam os manuais populares de filosofia.