Festa de Família
A Lei do Desejo
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 1998
É muito o que falta para cumprir meu desejo: é pouco para ser crime
(Ovídio, Metamorfoses)
“Festa de Família”, realizado em 1998 por Thomas Vinterberg, é um clássico cult: a palavra clássico sugere uma aura de respeitabilidade, uma espécie de consenso estético, ou pelo menos uma qualidade inerente que leve à manutenção do filme nos catálogos do streaming – e ao seu potencial de agradar novas audiências. Vinterberg é um exímio manipulador dramático, um dos artífices do manifesto Dogma 95, lançado a pouco mais de um quarto de século, 1995, ano das comemorações do centenário do cinema, com o objetivo de “purificar” o meio cinematográfico e atrair o público não “alienado ou distraído pelas superproduções”. O manifesto, um mix de bom humor com propostas contundentes, lembra os textos inaugurais de Vertov, assim como as diatribes de François Truffaut dos tempos da Nouvelle Vague. Dogma 95 foi, também, uma rara exibição de oportunismo: Vinterberg e Lars Von Trier demoraram 45 minutos para redigir o manifesto e ingressar na ordem global do audiovisual, quer dizer, no implacável sistema de distribuição internacional. São dez os mandamentos do Dogma:
- A filmagem deve ser feita na locação, sem artifícios cenográficos.
- O som nunca deve ser produzido separado das imagens ou vice-versa.
- A câmera deve ser na mão.
- O filme deve ser colorido. Iluminação especial não é aceitável.
- Efeitos ópticos e filtros são proibidos.
- O filme não deve conter ação superficial. Assassinatos, armas, etc., não devem ocorrer.
- É proibido afastamento temporal e geográfico. O filme se passa aqui e agora.
- Filmes de gênero não são aceitáveis.
- O formato deve ser Academy 35 mm.
- O diretor não deve ser creditado.
Os realizadores também declararam: Além disso, juro como diretor abster-me de gosto pessoal! Eu não sou mais um artista. Juro abster-me de criar uma “obra”, já que o instante é mais importante do que o todo. Meu objetivo supremo é forçar a verdade de meus personagens e cenários. Juro fazer isso por todos os meios disponíveis e à custa de qualquer tipo de bom gosto e quaisquer considerações estéticas.
Se algum projeto seguiu à risca esses preceitos, foi “Festa de Família”. O tema era direto na veia: como mostrar explosões que ocorrem quando as tensões dramáticas atingem níveis críticos no seio de um núcleo familiar. O núcleo: uma família dinamarquesa que se reúne em um hotel no campo para comemorar o aniversário de 60 anos do patriarca. Pouco antes, uma das filhas, Christina, suicidou-se. Os três filhos sobreviventes carregam cada um suas próprias bagagens neuróticas. A festa evolui para uma sangria emocional quando Christian, filho mais velho e irmão gêmeo de Christina, decide que não pode mais ficar calado sobre as transgressões passadas do pai. Empreendedor do ramo de restaurantes em Paris, Christian se levanta no meio do jantar formal e faz um brinde: no início, tudo bem, convidados rindo e sorrindo com as histórias contadas por ele. No mesmo tom descontraído, descreve a seguir, em detalhes gráficos, como o velho repetidamente estuprou ele e sua irmã durante a infância.
“Festa de Família” fragmenta-se em pequenos estilhaços pós-choque, em torno de Christian e irmãos. A ovelha negra e caçula, Michael, casado com três filhos, mas que teve um caso com uma das garçonetes do hotel, e vive em um clima de terror permanente de desapontar seu pai; Helene, a irmã que traz seu namorado negro para a festa, objeto de hostilidades por parte de Michael; a mãe, Moderen, que pode ou não ter conhecimento do comportamento indescritível de seu marido; e o patriarca, Hedge, o epicentro do terremoto, elegante e patético. O cast – Henning Moritzen, que faz Hedge, trabalhou em “Gritos e Sussurros”, de Ingmar Bergman – é excepcional: com uma equipe de apenas cinco pessoas e a câmera, uma DV Sony DCR-PC3 do tamanho de uma xícara, como disse Vinterberg, a resultante é um nível alto de concentração dramática. Você podia se mover por todo os lados e fazer tudo o que quisesse. Os atores estavam ligados o tempo todo, estávamos filmando tudo. E a luz? O roteiro previa cenas noturnas, logo a imagem vai ficar granulada – tudo bem, vamos fazer uma cena que se encaixe nos grãos, obedecendo às limitações do Dogma.
Rodado em vídeo, “Festa de Família” foi ampliado para 35 mm e teve uma surpreendente e exitosa carreira internacional, inclusive premiações em festivais. Um filme incontornável, em suma.