Curta Paranagua 2024

Os Cinco Diabos

Memória Olfativa

Por Pedro Sales

Festival de Cannes 2022

Os Cinco Diabos

Toda criança tem suas fixações e interesses. A pequena Vicky (Sally Dramé) é aficionada com essências e aromas. Em seu quarto-laboratório, que mistura química e alquimia, a garota recria o cheiro de todos que estão ao seu redor e cataloga cientificamente em frascos separados. Em “Os Cinco Diabos“, longa dirigido por Léa Mysius, o hobby exerce um papel fundamental, uma vez que ele é cercado por uma redoma mágica. O dom não se restringe à reprodução de odores e ao olfato super apurado da menina. A inalação dos recipientes fantasticamente conseguem transportá-la para o passado. A memória olfativa, portanto, é representada na invasão da memória do outro por meio da fragrância.

A premissa inusitada é engrandecida pela riqueza de gêneros cinematográficos explorados pela cineasta. O fantástico está sempre em voga durante o filme, no entanto, é o suspense que o sustenta. A presença de Julia (Swala Emati) transmite um claro desconforto no casal Joanne (Adèle Exarchopoulos, de “Azul é a Cor Mais Quente“) e Jimmy (Moustapha Mbengue). O suspense familiar, então, se desenvolve pelo oculto, a verdade escondida. A presença do novo, no caso novo-antigo, impacta diretamente as relações familiares e a quietude da vida que levavam. O mal estar causado pelo retorno de Julia atinge a comunidade como um todo, em razão de um episódio no passado e seu histórico de colapso mental. O desalento maior, no entanto, se materializa no ambiente da casa, devido ao que os três viveram intimamente há pouco mais de 10 anos. Mysius acrescenta a sua miscelânea de temas o romance, o qual se apresenta em dois momentos: a dormência da paixão matrimonial e o fulgor dos namoros na juventude.

A fim de encadear as revelações, “Os Cinco Diabos” utiliza com constância flashbacks. Apesar do recurso quase sempre soar como uma facilitação, aqui ele é totalmente necessário, pois se insere na diegese do filme e nas causalidades entre presente-passado. Nestes momentos, também, a invasividade da observação remete bastante ao voyeurismo. Todavia, destituído da carga erótica, mais pautado, por outro lado, na violação da privacidade e das memórias. O próprio cinema em si possui esse caráter voyeurístico, seja tematicamente, como no genial “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, ou no extrafílmico, na condição espectatorial. O ato de assistir a um filme, em um ambiente escuro, é comparável, por alguns teóricos como Lacan e Baudry, ao voyeurismo. As visitas de Vicky, guiadas pelo odor, penetram o íntimo dos pais, segredos que não deveriam sair do aprisionamento no passado.

Obedecendo à questão observacional dos olhares, a câmera de Mysius prefere filmar com certa distância, em planos subjetivos de quem vê de longe. Para ampliar a dramaticidade, entretanto, o uso da câmera na mão e dos closes se sobressaem. A personagem de Adèle Exarchopoulos, por exemplo, passa por uma amplitude dramática variada, desde o desconforto até o desejo pulsante, e a câmera, sempre próxima, acompanha as mudanças de expressões da atriz. A atuação da estreante Sally Dramé também se destaca, o olhar da criança é quase sempre envolto de um julgamento inconfesso, como se ela conseguisse ler a alma dos adultos. Além das boas atuações, Mysius ousa estilizar seu filme a fim de causar maior impacto. As composições contam com a forte iluminação em neon para destacar seus personagens, e, em certo momento, um plano adquire uma percepção caleidoscópica da realidade. A inventividade da realizadora se manifesta da mesma forma na trilha sonora. As canções adquirem um tom discursivo e verbalizam o que sentem os personagens.

“Os Cinco Diabos” é uma obra que trata de traumas do passado e suas ressonâncias no presente. A ocultação, por mais diligente que tenha sido, pode passar pelo transbordamento através das memórias e do encontro com o passado. A pulsão dos amores, no filme, não está submetida estritamente aos desejos, mas às intempéries e desencontros do destino. O sentimento velado, oculto e reprimido é escancarado no dom infantil mágico. Léa Mysius é bem sucedida em construir uma narrativa com gêneros diversos que, ao mesmo tempo em que é instigante e inventiva, consegue emocionar. A obra também reflete questões raciais e o preconceito, como o racismo sofrido por Vicky em forma de bullying.  No geral, a impressão final é de que por mais que exista só escuridão, às vezes quando a paixão é avassaladora –  tomando emprestados os versos da canção de Bonnie Tyler, “Total Eclipse of The Heart” –  não há nada o que se fazer, o amor eclipsa totalmente o coração.

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

  • Filmaço , Adele dando mais um show de interpretação, somente Hollywood não descobriu essa atriz. O filme é interessante, roteiro original, fotografia bela, o lago que aparece lembra uma pintura impressionista.

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