Os Caras do Estreito
Ponte para a paz
Por Bernardo Castro
Durante o É Tudo Verdade 2022
A premissa de “Os Caras do Estreito” é, no mínimo, instigante: um ex-engenheiro tcheco erradicado no Arizona se une a um empresário e político para retomar a investida pela qual dedicou muitos anos de sua vida – construir uma ferrovia que cruza o estreito de Bering e une o Alaska à Rússia. Alguns teorizam que, há cerca de 50 mil anos atrás, muitos seres humanos migraram do leste asiático para a América, atravessando o então congelado canal e dando origem às populações ameríndias nos países americanos. O Estreito de Bering é um trecho marítimo de dificílima navegação – condição essa que é agravada pelos invernos rigorosos na região quase polar. Em um esforço do homem de se sublevar a tempestuosidade arbitrária da natureza, George Koumal e seus aliados tiveram, no final do século passado, de construir uma linha ferroviária intercontinental, que uniria os Estados Unidos à Ásia.
Este documentário, que compõem a seleção dos candidatos à melhor longa-metragem internacional no festival “É tudo verdade”, foge dos padrões de documentário hiper expositivo e se apropria de um formato levemente experimental, sem abandonar a ludicidade necessária para ambientar o observador no clima esperançoso, sintonizando-o com a força de vontade inextrincável de George e seus associados de extinguir as barreiras que ainda permanecem erigidas na sociedade globalizada. Como forma, ele sabe bem qual direção seguir: inicia e finaliza com a leitura de uma carta do realizador direcionada ao protagonista, mas detém em seu corpo um formato de filme diário com elementos de road trip.
Como bom longa documental, “Os Caras do Estreito” utilizam de artifícios e técnicas do documentário moderno e não se limitam a pura e simplesmente pretender representar a realidade fidedignamente ou ser um mero registro do que se passa. Existe todo um trabalho de construção de personagens, arcos dramáticos, conflitos e resoluções – nem sempre muito satisfatórias – destes conflitos. Nos primeiros minutos, o filme introduz e mergulha profundamente na psiquê de George, expondo os seus sentimentos em relação à vida, como ele perdeu o dinheiro da sua aposentadoria com os planejamentos do projeto. Assim, tem-se uma melhor compreensão das atitudes que a personagem terá nas cenas posteriores, como a fácil irritabilidade que ele apresenta diante a demora da elaboração e as intermináveis politicagens de seu sócio. A equipe de montagem é incisiva ao tecer as tensões aos poucos, de forma a atingir a catarse no ponto de virada que precede a conclusão.
A abordagem do filme se destaca em certos pontos. Mesmo que velada, a crítica às tensões políticas é parte da espinha dorsal da tese. É interessante perceber que a inviabilidade do projeto dos nossos visionários ignotos, ao contrário do que pensa a maioria, tem mais a ver com a questão política do que com a falta de recursos e as restrições tecnológicas – inclusive, a viabilidade técnica é deixada subentendida nas pesquisas de Victor, um dos parceiros de George Koumal.
A fotografia prescinde de elogios. Com enquadramentos geralmente simples – com exceção de alguns mais artísticos e imbuídos de subjetividade, as câmeras de alta definição maravilham o espectador e o hipnotizam com as paisagens excelsas do hemisfério norte. Houve um investimento considerável em equipamento, contando com imagens de drone, que captam o relevo local em planos abertos admiráveis e compensam as limitações do ser humano ao cruzar o oceano sem grandes dificuldades. Uma ferramenta constantemente usada para complexificar os planos é a montagem paralela, que, ao atrelar imagens do oceano com a de ferrovias do estado do Alaska, materializa por uma questão de segundos o sonho dos responsáveis pela obra. A transparência da câmera é construída de uma maneira a parecer incontestável, até que haja uma mínima intervenção do cinegrafista na mise-en-scene, trazendo de volta para a realidade o desatento que está a assistir.
Em seus momentos derradeiros, “Os Caras do Estreito” consegue ainda deixar uma mensagem para aqueles que o estão assistindo. De forma bem lúdica, ele usa os desenhos das crianças como apelo para a humanidade, alimentando a esperança dos que esperam um mundo unificado. No final, o túnel toma proporções que transcendem o plano físico e comporta em si a fé em um mundo pacífico, onde as últimas barreiras foram demolidas e o amanhã é uma escolha única e exclusiva da humanidade.