Os Arrependidos
Um termo unilateral
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2021
O documentário “Os Arrependidos” de Ricardo Calil e Armando Antenore cumpre uma lacuna importante na compreensão das guerrilhas no período da ditadura militar brasileira. O filme vai atrás dos que recebem o título de “arrependidos”, ou seja, os que abandonaram a guerrilha após serem presos. O longa entrevista parte desse “grupo” e busca compreender o que motivou sua atitude e como cada um enxerga o ato com a maturidade de hoje.
A articulação é feita em torno dos materiais de arquivo daquele momento, fotos e documentos dos guerrilheiros presos pela ditadura, além de entrevistas concedidas aos militares, com amplo apoio técnico da Rede Globo. O filme faz uma importante secção, de forma capitular, separa os “Arrependidos” forçados e os que tomaram a atitude por uma reflexão particular. Aqui, os próprios protagonistas discursam sobre suas motivações para adentrar no movimento e abdicar do mesmo. De um lado, alguns acreditam que o radicalismo não iria modificar as estruturas políticas do país. De outro, que tudo aquilo era uma bobagem que os levaria à morte (um deles colabora com um jornal conservador de apoio à ditadura e realiza alguns trabalhos de caráter integralista). Porém, poder entender o que ocorreu de fato, sem o atravessamento das forças golpistas, muda a narrativa que envolve cada um dos personagens.
Os relatos descrevem as torturas e explicitam os fantasmas da repressão no olhar de cada um deles, exceto do reacionário. A guinada conservadora que o Brasil mergulhou nos últimos anos é uma assombração que persegue a narrativa que é explicitada. O material de arquivo expõe o poder coercitivo na ordem discursiva dos “arrependidos”, eufemismos precisam ser utilizados para a sobrevivência de cada um. E a relação direta que os diretores conseguem puxar para a contemporaneidade, é bastante enriquecedora. As perguntas são complementos de questionamentos possíveis e as respostas surgem com sentimentos variados, de culpa à raiva. Por essa razão, a estrutura que o filme concretiza não permite grandes desvios de sua temática central, pelo contrário, a objetividade de “Os Arrependidos” e sua economia na utilização dos materiais à disposição é louvável.
A entrevista concedida na presença dos militares é repugnante e o longa não a trata de maneira distinta. Entre a tortura e a renúncia da guerrilha, os presos são obrigados a responder uma série de perguntas em “tom amistoso”, porém com intuito de enquadrá-los em uma “nova ordem moral”, dogmática e arcaica. São tentativas de repreender os prisioneiros do mais baixo nível intelectual e a montagem do projeto encontra bem os espaços para rebater algumas das provocações ali feitas, utilizando as próprias entrevistas para mostrar que o vulgo arrependimento não é exatamente o que o nome tenta expor, na maioria dos casos. Não à toa, uma parte repudiava o termo e encontraram outras formas de categorizar.
Essas contradições entre os tempos, a maturidade e a juventude, compõem uma parte relevante do filme, que articula as falas para compor uma individualidade diante do passado. “Os Arrependidos” não foca no grupo, mas em cada indivíduo. Uma questão que o documentário deixa em segundo plano é a crença na esquerda, se ela se manteve ou não. O ponto da guerrilha fica claro, mas uma abrangência maior nas veredas políticas poderia criar um panorama ainda mais complexo. Porém, os esforços do longa para conseguir contar uma história que se tornou referência circense para a ditadura e ocupou a mídia por um tempo, de uma maneira crítica e verdadeira, a partir de seus próprios protagonistas, é algo que deve ser lembrado. Não existe julgamento aqui, o termo muitas vezes utilizado, traidor, não entra no espectro da discussão que Calil e Armando estão propondo. Pelo contrário, é uma tentativa de elucidar essa história para que não haja compreensão turva de nenhuma das partes e que possamos enxergar de perto as motivações de cada um. É mais humano que militante e por isso, consegue trabalhar em um campo dialético que propõe uma significação distinta em tempos onde a ditadura é aclamada nas ruas novamente.