Os Amores Dela
Filme-retrato
Por Pedro Mesquita
Verificamos na história do cinema alguns filmes de uma dedicação ímpar no retrato de suas atrizes principais; filmes cujo impacto se extrai da vontade de filmá-las, da vontade de fazer do filme um veículo para a exibição dos seus talentos; filmes cujo êxito se situa na fisicalidade da performance dessas atrizes muito mais que na narrativa ou na retórica que o diretor imprime sobre as imagens. Pensemos aqui em Maria Falconetti em “A Paixão de Joana d’Arc” (Carl Theodor Dreyer, 1928); Anna Karina em “Viver a Vida” (Jean-Luc Godard, 1962); Jean Seberg em “Altas Solidões” (Philippe Garrel, 1974); Émilie Dequenne em “Rosetta” (Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, 1999)… “Os Amores Dela”, filme de Charline Bourgeois-Tacquet — ou não seria mais pertinente dizer “um filme de Anaïs Demoustier”? — se situa certamente nesse tipo de cinema.
A provocação feita no período anterior não é injustificada: o filme pertence a Anaïs Demoustier, sua atriz principal, do começo ao fim. A escolha por referir-se à personagem pelo mesmo nome da atriz — sugerindo algum grau de aproximação entre a pessoa e a personagem que ela interpreta — parece sintomática de um filme interessado em registrar com bastante espontaneidade a aparência física de Demoustier, sua sensualidade, suas habilidades de atriz…
A sequência inicial do filme exemplifica isso perfeitamente bem. Acompanhamos o desfilar de Anaïs pelas ruas de Paris rumo ao seu apartamento, onde ela conversa com a proprietária do local sobre os aluguéis atrasados que ela promete pagar. A cena, entretanto, não se resume a essa breve descrição feita aqui: a diretora Charline Bourgeois-Tacquet lhe imprime um ritmo caótico, e essa conversa entre Anaïs e a locadora é constantemente interrompida pela inquietude de Anaïs, que anda para lá e para cá, instala na parede do apartamento um alarme contra incêndios, verifica o seu funcionamento, tenta consertá-lo quando ele não funciona corretamente… e, enquanto isso, a câmera a segue fielmente, muitas vezes por meio de planos-sequência que vão reenquadrando as personagens à medida que elas mudam de posição no espaço cênico. Este estilo de encenação parece ter alguma influência dos irmãos Dardenne (citados anteriormente), embora essa associação não possa ser levada ao pé da letra: inexiste aqui aquela “estética de fluxo” — caracterizada por um trabalho de montagem rarefeito que leva o espectador a um estado de imersão na cena — da qual os Dardenne são um dos mais famosos exemplos. Pelo contrário: o trabalho de montagem aqui é bastante tradicional, e lembra muito mais, tanto a nível formal quanto narrativo, um filme como “Frances Ha” (Noah Baumbach, 2012) — outro filme, aliás, sobre os desafios que a vida adulta apresenta a uma jovem recém emancipada dos pais e procurando se estabelecer (financeiramente, afetivamente) na vida.
É por cenas como essa que destacamos que o prazer de “Os Amores Dela” reside muito mais na presença magnética de Demoustier que no desenrolar da narrativa. Não raramente as situações apresentadas pelo filme são banais, mas a performance apresentada pela atriz é de uma vivacidade tal que nos faz perceber que mesmo a banalidade pode ganhar no cinema um belíssimo tratamento. Como não admirar, por exemplo, a cena — parecidíssima em execução com aquela descrita acima — em que Anaïs faz um tour pelo seu apartamento, apresentando-o a um casal de coreanos que passará ali a semana, alternando comicamente entre o francês e o inglês? É, inclusive, com alguma ironia que notamos que o filme se enfraquece um pouco justamente no momento em que uma narrativa mais tradicional — e menos calcada nessas sucessões de banalidades — começa a se organizar, sobretudo quando a personagem de Valeria Bruni-Tedeschi entra em cena. A trama de um triângulo amoroso que começa a se desenrolar aí é sem dúvidas a parte menos interessante do filme — nesse momento, a espontaneidade cessa e a dramaturgia previsível prejudica um pouco a experiência (culminando num monólogo um tanto genérico por parte da personagem de Bruni-Tedeschi).
No entanto, evitando que o filme sucumba nas mãos de um clichê pouco inspirado, a cena final termina com uma divertida reviravolta: a insubordinação de Anaïs lhe garante um final feliz ao mesmo tempo em que salva o filme da mediocridade. “Os Amores Dela” é, enfim, uma obra que aposta todas as suas fichas no talento de sua musa inspiradora; felizmente, como ela o tem de sobra, o resultado é fascinante.