Orson Welles, Mank e o Oscar
Por João Lanari Bo
“Para mim, Orson é muito parecido com um rei destituído. Um rei destituído – não porque foi expulso do reino – mas (porque) nesta terra, como o mundo é, não existe reino bom o suficiente para Orson Welles.” Jeanne Moreau
“Quem está produzindo este filme, dirigindo e estrelando?”, brada o personagem Orson Welles, no final de “Mank” (leia crítica do filme aqui), o longa que David Fincher dirigiu para a Netflix a partir de roteiro de seu pai, Jack, sobre …a autoria de outro roteiro, um dos mais famosos da história do cinema, “Cidadão Kane“. O filho de imigrantes judeus alemães que virou roteirista de Hollywood, Herman J. Mankiewicz, conhecido pelos amigos como Mank, implora ao lendário diretor: “Quero crédito … é a melhor coisa que já escrevi”. Welles tem um ataque. Sua resposta não é a que Mank deseja: ironicamente, a explosão de Welles despertou um último lampejo de gênio em Mank, “um ato de purificação da violência”, tal como acontece quando o personagem Kane destrói seu quarto, depois de ser abandonado por Susan. Na vida real, Mank recebeu crédito como corroteirista de Cidadão Kane e a dupla acabou ganhando o Oscar de Melhor Roteiro Original, o único que Mank faturou. Welles disse: “Cara, você pode beijar minha metade.” Mank retrucou: “Estou muito feliz em receber este prêmio na forma como o roteiro foi escrito, ou seja, na ausência do Sr. Welles”. O azarão, pelo menos no filme de Fincher, terminou por cima, e Orson, o favorito, acabou como vilão.
O mundo girou e agora “Mank”, com sua versão dos fatos, desponta como um dos favoritos para o Oscar de 2021. À primeira vista, parece mais um sintoma patológico da Academia, com seus ilustres eleitores e eleitoras, que sinalizam de vez em quando suas preferências movidos pelo sentimento de culpa. Certo, Mank era um sujeito talentoso que não teve o reconhecimento merecido e anda meio esquecido? Sim, mas, muito mais do que o roteirista, quem apanhou do sistema hollywoodiano foi Orson Welles, um caso cinematográfico sem dúvida bem mais relevante do que Herman Mankiewicz, entre outras razões porque foi obrigado a pagar um preço exorbitante pela … independência autoral. Como diz o pesquisador e exegeta Claudio Valentinetti, ao fechar um texto sobre o bardo-cineasta:
Que sobra ao fim desse breve percurso pelo universo wellesiano? Além da imagem de um gênio, diretor, ator, charlatão, histrião, amado, odiado, invejado, bajulado: um grande em todo sentido, um grande no sentido dos antigos, um grande como um rei. Como ele mesmo explicou aos “Cahiers du Cinéma”: “Vocês sabem que, no antigo teatro francês clássico, havia sempre uns atores que recitavam o papel dos reis, e outros que não o recitavam nunca: eu sou daqueles que interpretam os reis. Devo fazê-lo por causa da minha personalidade. Então, eu recito sempre o papel de chefes, de pessoas que sempre têm algo de desmedido: eu devo sempre ser “bigger than life”, maior que a vida”. Maior que a vida, isso. O resto é — shakespearianamente — silêncio.
“Mank” portanto não é apenas um filme sobre Mank, é também sobre Orson Welles, que paira como se fosse uma nuvem big data por cima da cabeça dos mortais que pelejavam para produzir o script. Uma ausência-presença que um especulador do calibre de Maurice Blanchot poderia nos proporcionar uma daquelas explicações a um só tempo densas e fugazes. O escritor, Mankiewicz, era conhecido pelas bebedeiras, humor cáustico e vício em apostas: começou como jornalista (e dramaturgo nas horas vagas) em Nova York, foi atrás de melhores empregos em Hollywood; trabalhou em produções de sucesso, dos Irmãos Marx ao Mágico de Oz, e outras do gênero descartáveis. Convalescendo de um acidente de carro, é arrastado para uma casa de hóspedes no Mojave com a secretária Rita Alexander, para que possa terminar o roteiro em 90 dias. Engessado na metade inferior de torso e maior parte de perna, tem que fazer tudo isso sóbrio: com 43 anos, é supervisionado por John Houseman, ator e produtor àquela altura associado a Welles – mas de quem logo se tornaria um desafeto. E é ele, Houseman, a principal fonte, senão a única, que inspirou o incendiário texto de Pauline Kael sobre a autoria de Cidadão Kane, subjacente e invisível na produção da Netflix.
Mank é instável emocionalmente (ou se fazia como tal), a família continuou na costa leste. Dividia sala e roteiros com um grupo da pesada, Ben Hecht, Charles MacArthur, George S. Kaufman, Charles Lederer e S.J. Perelman, todos laureados artistas da palavra, alguns com Oscar. Seu ponto de virada – no filme e na vida – ocorre quando invade bêbado o castelo de Hearst, que recebia convidados absurdamente fantasiados em costumes circenses, e conta a história de seu novo roteiro, uma espécie de “Dom Quixote moderno”. Com um discurso arrastado, revela não tão sutilmente que baseou o personagem principal em Hearst, um idealista que já foi socialista, mas que acabou corrompido pela ambição do poder. Depois de vomitar, é conduzido à porta pelo próprio Hearst, que conta a parábola do macaco e do músico: não morda a mão que o alimenta, você é apenas a marionete dos poderosos de Hollywood. Paradoxalmente, a diatribe do magnata pareceu fortalecê-lo para confrontar Welles sobre o roteiro.
F for fake: Verdades e Mentiras
Pauline Kael foi uma crítica feroz, de língua afiada, disso ninguém duvida. Alguns de seus textos demolidores são referência para quem quer liberar a subjetividade e detonar o bom-mocismo. Quem viu de A Testemunha, realizado por Peter Weir em 1985, certamente se recordará de Harrison Ford integrando-se ao mutirão dos Amish para construir casas, uma cena que remete ao purismo bíblico daquele grupo religioso atemporal: Kael não vacilou, derrubou o filme exatamente em cima do altruísmo coletivo pueril e idealizado, vociferando algo como “quem, nessa altura do campeonato, acredita em mutirões?”. Jonathan Rosenbaum, que também não hesita em disparar comentários ferozes, disse o seguinte da colega, que ainda era viva nessa altura (faleceu em 2001):
Quando Kael começou a esculpir sua reputação no início dos anos 60, era conhecida principalmente pelo sarcasmo vigoroso de seus ataques ad hominem contra outros críticos. Agora que ela escreve para um público muito mais amplo na The New Yorker (onde “Raising Kane” apareceu pela primeira vez), o sarcasmo ainda está lá, mas geralmente as únicas figuras atacadas pelo nome são celebridades – como Orson Welles; os críticos são torrados anonimamente. Isso pode ser devido à cortesia profissional ou ao pressuposto mais provável de que os leitores nova-iorquinos não se importam com livros de filmes de outros escritores, mas cria uma imprecisão ocasional.
Rosenbaum, um profundo conhecedor do universo wellesiano, simplesmente desconsidera qualquer valor documental na obsessão de Kael – recuperada por Mank, em 2020 – em atribuir a primazia da escrita a Herman Mankiewicz, assim como todos os pesquisadores sérios e exigentes que se debruçaram sobre o assunto. Pauline ouviu apenas o irascível John Houseman, e ainda por cima utilizou-se da pesquisa de Howard Suber, professor da UCLA – sem pagar nem dar o devido crédito (a seu favor, diga-se que esta não era sua prática habitual, segundo seu biógrafo). O que se seguiu à publicação do artigo e do roteiro com introdução da impulsiva crítica, ambos em 1971, foi uma revoada de adesões da imprensa mais ou menos oportunista, sempre disposta a crucificar figuras pouco afetas a definições convencionais, com tendência liberal (nos EUA isso quer dizer “de esquerda”) e de quebra com um histórico de brigas e confusões com os grandes estúdios – traços de Orson, por óbvio. Algumas poucas vozes naturalmente não embarcaram nessa canoa furada, entre elas a do próprio Welles, claro. Amigo próximo, o diretor Peter Bogdanovich compilou e escreveu à época uma resposta (na realidade Welles escreveu, segundo Rosenbaum…) intitulada “Kane Mutiny”, em que afirma:
Orson disse: “Herman deu uma grande contribuição. É por isso que dei a ele o primeiro faturamento nos créditos!” Ele não precisava dar isso a ele. Orson mudou pessoalmente a ordem dos créditos. Ele me lembrou da história de Bernstein em Kane quando viu a mulher na sombrinha branca, apenas por um momento, mas não houve um dia que ele não pensasse nela. Orson disse, muito emocionado: “Aquela foi do Mankiewicz! Essa foi a minha cena favorita no filme!”
Posteriormente, o historiador Robert Carringer pesquisou sete versões do roteiro de Kane nos arquivos da RKO e comprovou, sem sombra de dúvida, que Welles foi não apenas co-autor mas, mais ainda, foi o autor principal. Foram sucessivas revisões e acréscimos feitos em cima do material de Mankiewicz, que Orson, acostumado ao ritmo febril de rever (e escrever) roteiros desde os tempos do rádio, fazia velozmente. Carringer publicou em 1978 um artigo sobre a investigação, ampliado para livro, em 1984. Ou seja, este é um assunto superado, se é que houve em algum momento quem realmente duvidasse com base em evidências concretas.
Mas, então, por que cargas d’agua David Fincher resolveu desenterrar essa história, usando uma baliza emocional – seu envolvimento em rodar o roteiro do próprio pai, o jornalista Jack Fincher, concluído em 1995 (Jack faleceu em 2003)? Seu argumento, de que Mank não é um filme sobre as querelas entre Welles e Mankiewicz, quem escreveu o quê, mas sim sobre o “ofício da palavra, a relação entre roteiristas e diretores, uma relação complicada, o conflito saudável que existe entre os dois” – é uma razão secundária, não se sustenta como argumento central. É claro que essa conversa não prima pela capacidade de persuasão, sobretudo para os executivos da Netflix. David Fincher é um diretor extremamente bem sucedido para os padrões hollywoodianos – basta citar Clube de Luta (1999), A Rede Social (2010), O Quarto do Pânico (2002) e a série para a Netflix, Mindhunter (2017) – para permitir a suposição de que sua aposta no projeto residiu mais na polêmica do roteiro de Kane (e no mito wellesiano) do que em qualquer outro motivo.
O mundo mágico de Orson Welles
Em 1937 a RKO convocou George Schaefer para comandar a produção do estúdio: foi ele quem contratou Welles, uma escolha que refletia prática antiga da casa de trazer estrelas do rádio para o cinema. Schaefer esteve envolvido em todos os projetos de Orson Welles, inclusive a filmagem abortada no Brasil, It’s all true – e acabou saindo da RKO em 1942, por conta da controvérsia em torno de Soberba. Enquanto Schaefer aplainou os conflitos, as coisas corriam relativamente bem, mas isto não significa que Welles tivesse liberdade total: não faltaram roteiros rejeitados ou abandonados durante sua passagem pela RKO. Além de Coração das Trevas, o mais conhecido, adaptação do livro de Joseph Conrad, um outro texto, sem título e identificado pela equipe de produção como “melodrama mexicano”, consta da lista (há também uma história de espionagem, baseada em livro de Nicholas Blake). Os dois, Coração e o melodrama, foram escritos por Orson Welles antes de Kane: James Naremore, outro sagaz conhecedor da saga wellesiana, comenta:
Havia, no entanto, uma certa tensão entre suas ambições (de Welles) e as demandas de Hollywood. Coração das Trevas e o “melodrama mexicano” demonstram essa tensão com bastante clareza, sobretudo porque têm muito em comum. Ambos estão preocupados com demagogia e manipulações; ambos envolvem uma jornada perigosa para o coração de uma selva; e ambos usam um tema “doppelganger”, no qual um protagonista liberal é acionado contra um sósia fascista. (Welles teria um papel duplo em Coração das Trevas, e poderia ter feito o mesmo no filme mexicano). O fato de os dois projetos serem tão semelhantes sugere que o “melodrama mexicano” poderia ser descrito como uma tentativa de refazer Conrad de uma forma mais popular, menos experimental e mais barata.
Claro, diferenças de fundo permaneciam: o livro de Conrad (que Welles e Howard Koch tinham encenado no rádio logo após a famosa transmissão da invasão marciana em a Guerra dos Mundos) foca no imperialismo belga do século 19 no Congo, enquanto a adaptação de Welles, embora fiel ao original, atualiza a história para o contexto das ditaduras fascistas da época. No “melodrama mexicano” não há nada disso: a demagogia e as manipulações são transpostas para um thriller estilo “wrong man” como o Hitchcock de Intriga Internacional. Na capa do roteiro sem título, Welles escreveu uma breve nota explicativa: “Minha parte nesta história não tem nome. O personagem, portanto, será referido na primeira pessoa”. O que se segue é uma trajetória kafkiana desse personagem-sem-nome no ensolarado México: logo descobrimos que ele foi atingido por inimigos políticos, é despido e levado para uma delegacia de polícia, mas não temos mais ideia de sua identidade ou em que país ele está, muito menos do que ele faz. Em um coquetel no palácio presidencial, conhece a bela Elena (papel reservado para Dolores del Rio) e o misterioso General Torres. A atmosfera paranóica, ainda segundo Naremore, continua para a próxima parada, o nightclub El Chango, e na sequência para a praça em frente ao balcão presidencial, com milhares de mexicanos. Personagem amnésico – quando alguém diz “seu nome é Kellar”, ele acredita – procura obstinadamente uma estação de rádio numa obscura ilha para transmissões secretas para os EUA. Depois de uma complicada série de eventos, um grupo de alemães e mexicanos se reúne para planejar um golpe de estado: tudo converge para o clímax final do roteiro. Concebido como propaganda de guerra, no espírito da “Good Neighbor Policy” que animava também o filme no Brasil, o “melodrama mexicano” terminou desagradando o governo do México e foi para a gaveta.
E conclui James Naremore:
Assim, tanto Coração das Trevas quanto o “melodrama mexicano” permanecem esboços para possíveis filmes. Talvez seja bom que eles não tenham sido produzidos – Welles foi capaz de empregar seus temas e estilo em outras obras (no lugar de um Kurtz descoberto no coração das trevas, ele nos deu um Kane descoberto no centro de um labirinto), e por qualquer padrão seus dois primeiros filmes representam uma estreia mais do que impressionante.
Seria Orson Welles um artista barroco e radiante? Ou um prestidigitador, um… charlatão? Os shakespearianos ortodoxos de todos os quadrantes, inclusive no Brasil, torcem o nariz para a versatilidade e o ímpeto deglutivo com que Orson trabalhou em cima dos textos ditos “clássicos” do bardo, cortou cenas e personagens, introduziu situações e fundiu personagens. No teatro, na montagem de Júlio César, em um dos momentos mais impressionantes – a execução do poeta Cinna por uma turba violenta – ele tomou emprestado linhas de Coriolano. Sua técnica autoral usa e abusa da “licença dramática” no que concerne à identidade autoral, trabalhando situações limítrofes nas quais narrativas e personagens parecem esvair-se diante dos nossos olhos de tão fluidas e bem construídas que são. Se fazia isso com Shakespeare, mais ainda com suas próprias obsessões artísticas: que eram, grosso modo, amalgamar uma crítica desmistificadora de demagogos e autocratas – herança do ambiente político “new deal” rooseveltiano que absorveu – com uma estética gótico-expressionista, como sugere Naremore. Personagens e temas transitam no espaço e tempo dos textos e imagens, reaparecendo e submergindo conforme os limites físicos das produções: Kurtz, em Coração das Trevas, Kellar, no “melodrama mexicano” …e Kane, em Cidadão Kane. Mankiewicz, um brilhante escritor, teve a sorte de pegar carona nesse comboio, ao lado de inúmeros outros e igualmente brilhantes parceiros, em uma longa, acidentada e produtiva carreira. Welcome to the magic world of Orson Welles. Até o filme de Fincher tornou-se caudatário do trem agit-prop wellesiano, com alguma estatueta do Oscar no horizonte palpável do exorcismo culposo hollywoodiano. Contudo, outro mito recorrente é sobre o “fracasso” do Welles pós-Kane: mito que ele mesmo retroalimentava, nesse jogo de indistinção entre falsários e ilusionistas versus vida e obra. Mas isso, hélas, é outra história…