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Orson Welles e as vertentes shakespearianas

Orson Welles

Orson Welles e as vertentes shakespearianas

Por João Lanari Bo

Orson Welles aprendeu a ler com William Shakespeare, dizia Rogério Sganzerla. A intimidade da poética audiovisual wellesiana com aquela que é a principal matriz cultural do vernáculo anglo-saxão – e quiçá de inúmeros outros vernáculos – é assombrosa. Ver e ouvir Orson Welles deslizar em cima de um texto do bardo é uma dessas experiências configuradoras, no sentido etimológico do termo, “formar um padrão a partir de uma figura”. Welles transitou em todas as vertentes shakespearianas, na alta e baixa cultura: dezenas de adaptações no rádio, teatro, e televisão; no cinema realizou “Macbeth”, em 1948, “Othello”, 1952, e “Falstaff – o Toque da Meia-Noite”, 1965; em 1934 editou com seu amigo Roger Hill o livreto popular “Everybody´s Shakespeare”, com introdução dos textos e notas para montagem dos clássicos “Júlio César”, “Mercador de Veneza” e “Noite de Reis”; e não se cansou de alardear a grandeza do poeta, o “maior entre os maiores”, nas inúmeras entrevistas e notas biográficas de que foi objeto.

William Shakespeare ocupou, portanto, uma considerável fatia na (vulcânica) capacidade de produção do polivalente cineasta americano. Seria Orson Welles um artista barroco e radiante? ou um prestidigitador, um… charlatão? Os shakespearianos ortodoxos de todos os quadrantes, inclusive no Brasil, torcem o nariz para a versatilidade e o ímpeto deglutivo com que Orson trabalhou em cima dos textos ditos “clássicos”, cortou cenas e personagens, introduziu situações e fundiu personagens. Sua famosa montagem “Voodoo MacBeth”, encenada no Harlem, em 1936, foi um sucesso de público e crítica; inspirado pela esposa, Welles transferiu o set da peça para o Haiti, convocou um elenco exclusivo de atores negros (antecipando o nosso Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento) e, claro, soltou a mão no voodoo, contagiando a narrativa com uma ênfase acalorada na bruxaria. Somente o deslocamento espacial na geografia novaiorquina do teatro escolhido – da Broadway para o Harlem – já despertou reações iradas do “establishment” literário. Outro exemplo teatral, com efeitos de distanciamento igualmente brechtianos, foi a montagem de “Júlio César”, em 1937, também com falas e cenas cortadas ou alteradas, ambientada na Itália fascista comandada por um Mussolini a pleno vapor – o poeta Cina, que na versão “original” shakespeariana é linchado até a morte por uma multidão enfurecida, terminou seus dias, na montagem wellesiana, vítima da polícia secreta fascista.

Ao contrário dos diretores que adaptaram Shakespeare para o cinema, como Lawrence Olivier (também um dos grandes atores shakespearianos), Kenneth Branagh e Franco Zeffirelli, para citar alguns dos mais conhecidos, Orson jamais contou com aportes generosos de produtores e apoio institucional, tendo que lidar com as dificuldades de produção na base do esforço e abnegação pessoais, além da dedicação de incansáveis colaboradores. Essas e outras histórias são escrupulosamente contadas por Michael Anderegg, que escreveu um ótimo livro sobre Welles, Shakespeare e a cultura popular (infelizmente ainda não traduzido no Brasil). Anderegg faz todas as comparações possíveis nas várias junturas das peças “originais” de William Shakespeare e as adaptações de Orson Welles, tais como: ambos eram interessados nas maquinações diabólicas envolvendo reis e nobres, ricos e famosos, sempre na interface do pessoal e do social; ambos foram vítimas de censura, nos respectivos contextos, produtores hollywoodianos e puritanismo elizabetano; ambos excederam nas minúcias da linguagem, das descontinuidades dramáticas a inovações narrativas, escrevendo, dirigindo e representando; ambos, enfim, usaram e abusaram da “licença dramática” no que concerne à identidade autoral, trabalhando situações limítrofes onde narrativas e personagens parecem esvair-se diante dos nossos olhos de tão fluidas e bem construídas que são.

Orson Welles, como é sabido, não apenas escolheu personagens ariscos e incertos em relação ao “contorno identitário”, como também ele mesmo tratou de forjar um emaranhado de pistas para seus biógrafos, despistando mais do que dando pistas, projeto que culminou no genial filme-ensaio “F for Fake” (Verdades e Mentiras, 1973). O bardo teve uma trajetória distinta, mas quem conhece o debate sobre a “originalidade” dos textos shakespearianos sabe do terreno movediço que trabalham os estudiosos, já que muitas vezes estão disponíveis apenas cópias de ensaios e repetições, outras vezes versões que denotam sutilíssimos lapsos tipográficos, provocando discussões acadêmicas intermináveis. A aparente indiferença do poeta para questões autorais, tal como entendemos hoje essa complexa questão – “autoral” na Inglaterra elizabetana é outra coisa – gerou igualmente um emaranhado de pistas que fizeram de Shakespeare uma espécie de personagem wellesiano, fugidio e esquivo, mas marcante e obstinado. A mitologia que se criou com a autoria das peças, se existiu ou não o cidadão William Shakespeare – teria sido Christopher Marlowe o verdadeiro autor, um genial dramaturgo nascido no mesmo ano de William e assassinado numa briga de bar? Ou teria sido um conde preocupado com as aparências e cioso da sua nobreza, mas implacável em retratar as crueldades de seus pares? – remete, sem dúvida, para um contexto conhecido nosso, “the magic world of Orson Welles” (título, aliás, de um dos melhores estudos sobre o artista, de autoria – certificada – de James Naremore).

Jorge Luis Borges, outro ilustre personagem que despistava e desconstruía referências mentais entranhadas na cultura, escreveu que o mais famoso filme de Welles, “Cidadão Kane”, parecia “um labirinto sem centro”. A imagem, assustadora, serve também como uma descrição da trajetória errante de Orson Welles no cinema, a partir do sucesso estrondoso da estreia. Um exemplo é “Othello”, filme-mito que venceu a Palma de Ouro em Cannes de 1952 e entrou a seguir numa zona de obscuridade que durou décadas, graças aos incontáveis desacertos entre produtores e distribuidores, para finalmente ser restaurado e exibido em 1993. Os críticos favoráveis à adaptação, desde o festival de Cannes, se excedem em elogios de alcance, digamos, metafísico: Andre Bazin, o decano dos críticos do “Cahiers du Cinema”, entusiasta do cinema de Orson Welles, escreveu que “as paredes, catacumbas e corredores ecoam, refletem e multiplicam a eloquência shakespeariana”, enquanto que Jack Jorgens, autor de um livro sobre “Othello”, ressaltou que “os movimentos de câmera são estonteantes, as sombras grotescas, as distorções insanas …a figura humana é adulterada, os personagens separados por distâncias imensas provocando uma sensação insuportável de confinamento… tetos parecem cair, paredes tornam-se excessivamente pesadas, e o mundo parece fechar-se sobre si mesmo”.

Obviamente teve gente que detestou a “ousadia”. Como bom mitômano, Orson resolveu, nos últimos anos de vida, contar como foi a experiência de “Othello”, participando de um documentário produzido pela TV alemã, em 1978, intitulado “Filmando Othello”. O “tratamento alucinatório da montagem” e a “sensação insuportável de confinamento”, conta Welles, tiveram sua origem numa sofreguidão de altos e baixos da produção do filme, que demorou três anos para ser concluído e exigiu um altíssimo espírito de improvisação e adesão coletiva. Para começar, os produtores Salvatore e Michel Scalera, conhecidos pelas produções operísticas popularescas, convidaram Orson para “Othello” de Verdi, não a peça de Shakespeare (Verdi também gostava de Shakespeare). A confusão demorou meses para ser debelada, e só terminou mesmo porque os Scalera … faliram, gerando naturalmente uma enorme ansiedade na equipe e nos atores. Inicialmente previsto para ser rodada na Itália e sul da França, a produção acabou transferida para o Marrocos, numa das locações mais bem sucedidas da história do cinema, na cidade de Mogador (hoje Essaouiri), onde desponta uma belíssima fortaleza portuguesa quinhentista. Interrupções prolongadas, escassez de recursos, filmagens dispersas em diferentes cenários, rodízio de técnicos – em um momento Orson foi a Londres e montou, com a ajuda de Lawrence Olivier, uma versão de “Othello”, conseguindo algum fôlego financeiro – produziram uma película que traz embutida uma verdadeira saga épica. Welles conta que o produto final, um filme “apátrida”, quase terminou detonando uma gafe diplomática em Cannes: na hora da premiação, ninguém sabia o hino do Marrocos, afinal a bandeira por onde “Othello” fora inscrito no festival. A solução foi tocar uma opereta francesa com sabor oriental…

Claro que as “distorções insanas e sombras grotescas” têm por detrás um olho aguçadíssimo do diretor e dos seus fotógrafos, mas a necessidade de filmar em um set aberto e úmido como a fortaleza de Essaouiri certamente contribuiu para essas soluções. Também a “montagem alucinada”, inevitavelmente relacionada à penúria de negativos e dificuldades de continuidade, deve muito ao talento dos realizadores. Para um diretor compulsivo como Orson Welles, sempre à margem do sistema de entretenimento estilo Hollywood, os limites físicos da produção eram uma constante. Um risco permanente que acabou virando uma marca da linguagem wellesiana e um dos fatores que concorre, de certa maneira, para a sensação de “vertigem” que seus filmes provocam.  Treinado no ritmo alucinado das produções radiofônicas dos anos 30 – são famosas suas improvisações ao vivo, como em “Hamlet”, por exemplo, em que fez os atores interpretarem o texto de forma acelerada e pulando cenas, para concentrar a ação no príncipe dinamarquês e suas hesitações existenciais – não foi difícil para ele transferir essa versatilidade para o cinema. O leitor poderá conferir algumas dessas performances no rádio no site wellesnet.com, juntamente com farto material crítico e, como não poderia deixar de ser, um rosário de histórias inacreditáveis, mas verdadeiras.

Michael Anderegg concluiu seu penetrante ensaio lembrando que a maior convergência entre Shakespeare e Welles, afinal de contas, é a paixão pelos personagens, mesmo que eles sejam, na maioria dos casos, déspotas mais ou menos esclarecidos, vingativos e inseguros, atormentados e enlouquecidos. Personagens que estão à nossa volta, garantindo a perenidade dos universos shakespeariano e wellesiano. O favorito de ambos, Orson e William, foi sem dúvida Falstaff, obra-prima de bufonaria e arrogância, presente em três peças de Shakespeare. Falstaff, amigo de orgias do príncipe herdeiro e que acabou na sarjeta, esquecido pelo companheiro de farra quando este ganhou a coroa, deu lugar a um dos melhores filmes de Welles, com uma produção igualmente longa e confusa. Mas isso é outra história…

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