Festival Curta Campos do Jordao

Onoda – 10 Mil Noites na Selva

Esfera de Coprosperidade

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2021

Onoda – 10 Mil Noites na Selva

Onoda – 10 Mil Noites na Selva”, do francês Arthur Harari, explora um mito aparentemente desgastado: o da exclusão individual da civilização, de preferência numa ilha deserta, estilo Robinson Crusoé. O famoso personagem foi criado por Daniel Defoe em 1719, numa fictícia autobiografia de um náufrago que passou 28 anos em uma remota ilha no Caribe. O livro foi originalmente publicado na forma de folhetim no The Daily Post, jornal que circulou no século 17 na Inglaterra. No final do século 19, nenhum livro tinha mais reimpressões e traduções do que Robinson Crusoé: cerca de 700 versões, incluindo edições infantis sem texto, apenas com imagens. Um enredo romântico com tintas colonialistas, diriam os céticos: o fato é que os ingleses ocuparam meio mundo a partir do século 17, construindo o império “onde o sol nunca se põe”. Não existia, é claro, o GPS: mas a sensação era de que não havia quadrante no globo em que a mão visível dos britânicos não pudesse alcançar. O livro, portanto, pode ser lido como uma alegoria do movimento de expansão do capital colonizador inglês, que enxergava o planeta como uma permanente possibilidade de investimento e lucro. Robinson Crusoé estava isolado da civilização, mas sua aventura era passível de ser imaginada e consumida. Pois os tempos passaram, e em fins do século 19 uma nova potência de fortes ambições colonialistas surge no horizonte: o Japão imperial, que logo passou a mirar o imenso continente asiático como objeto de desejo, como um “bloco de nações asiáticas autossuficiente, (a ser) liderado pelos japoneses e livre das potências ocidentais” – conhecida como Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, a ideia era promover uma nova ordem internacional para os países asiáticos, os quais compartilhariam paz e prosperidade, livres da dominação das potências europeias e Estados Unidos. Uma tal ambição, mesmo que a guerra tenha acabado em 1945, parece sobreviver de alguma forma e ter necessidade também de construir seus mitos: o soldado Hiroo Onoda seria, portanto, uma atualização do personagem Robinson Crusoé, isolado na selva e sobrevivente em meio às intempéries, no contexto dos derradeiros e agonizantes momentos da Guerra do Pacífico, como os japoneses denominam a Segunda Guerra Mundial no teatro asiático.

Essa é a narrativa subjacente de “Onoda – 10 Mil Noites na Selva”. Onoda, portador de um heroísmo involuntário, foi treinado para infiltrar-se nos territórios em vias de serem perdidos diante dos avanços dos norte-americanos. Apesar de obviamente inexequível, uma tal iniciativa pode ser entendida no âmbito da irracionalidade que afetou as decisões militares japonesas às vésperas da estrondosa derrota que se anunciava. Se os kamikazes foram a face mais dramática dessa irracionalidade, a missão de Onoda – que era expressamente proibido de tirar a própria vida – surge como alternativa tática que visava estabelecer uma resistência na base da guerrilha. O treinamento de Onoda, supõe-se, foi nessa direção. Se isso poderia funcionar é outra questão – com a distância histórica é fácil classificar de opção delirante. Sua intransigência em aceitar o fim da guerra agregou, certamente, um atrativo a mais na construção mítica: o cineasta Werner Herzog foi um dos que se deixou seduzir pelo personagem e sua saga. Os 29 anos que Onoda passou na selva filipina, na ilha de Lubang, configuram, na ótica romântica, um mergulho na psique humana em condições limítrofes de sobrevivência. Herzog escreveu um pequeno livro romantizando Onoda, depois de entrevista-lo: em compensação, o turista japonês que estabeleceu contato com o fugitivo em 1974 foi na direção oposta. O título mesmo do livro que escreveu – Herói de Fantasia – desmistifica o suposto heroísmo do soldado, muito mais próximo do remanescente militarismo japonês do que uma sublimação de coragem e destemor. A recepção de Onoda em sua volta ao Japão, aliás, nunca foi unânime: foi considerado como vítima, mas também como memória de um passado militar-expansionista alucinado e trágico. Onoda – que morou no Brasil criando gado no Mato Grosso do Sul, entre 1975 e 1984 – tornou-se um signo histórico ambivalente e controverso, apropriado sobretudo pelos extremistas nostálgicos do Japão imperial como se fora um herói mítico e atemporal.

O buraco é mais embaixo, diz a sabedoria popular. No Japão subsistem forças políticas que, embora minoritárias, ainda sonham com o imperialismo xenófobo e expansionista. Onoda passou os anos na ilha de Lubang saqueando e matando, camponeses e policiais, em nome de uma fantasia anacrônica extraída da ideologia nipônica da primeira metade do século 20. Seriam pelo menos 30 mortes, muitas de violência extrema, não explicitadas no filme. As Filipinas, país-arquipélago com mais de 7 mil ilhas, clima quente, úmido e tropical, 100 milhões e pouco de habitantes – tem uma longa história de sofrimento e exploração de potências colonizadoras, Espanha, Japão e Estados Unidos. “Onoda – 10 Mil Noites na Selva” é mais uma etapa dessa epopeia.

2 Nota do Crítico 5 1

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