One Child Nation
De boas intenções o inferno está cheio
Por Adriano Monteiro
Amazon Studios
Em 1979, a famosa política de um filho só é implementada na China. A lei, que perdurou por 35 anos, consistia na proibição de qualquer casal ter mais de um filho em território chinês, como forma de limitar o crescimento populacional. A intervenção estatal e suas consequências ao país são retratadas pelo olhar pessoal das cineastas Nanfu Wang e Jialing Zhang, ambas nascidas na época da lei, em “One Child Nation” (2019), documentário distribuído pela Amazon Studios. A história pessoal de Wang somado a arquivos pessoais, históricos e depoimentos montam o seu retorno ao país, como mãe e sem mais a política intervencionista. O resultado é uma fotografia panorâmica da “guerra populacional” vivida na China, em tempos de perseguição, propagandas invasivas e, principalmente, controle do corpo feminino. Ou o que poderia ter sido.
Pelos créditos iniciais, com imagens que cortam de um feto a uma visão de cima do militarismo chinês, o espectador é engolido pela proposta estética e política de juntar o privado ao público. De antemão, a diretora Nanfu Wang relaciona os corpos sólidos, ameaçadores e padronizados do exército ao feto, frágil, flutuante em líquido amniótico. A dança entre essas duas entidades, a maternidade e o governo não poderiam dá certo. Wang, logo, é motorista de uma jornada pessoal. Percorre caminhos fáceis de documentários do gênero, abusando de fotos pessoais e narração em off a la Petra Costa, menos “Elena” (2012) e mais “Democracia em Vertigem” (2019), ao explorar até a última fagulha de vida para esgotar temas complexos. Enquanto Petra consegue sair razoavelmente bem nesse processo, a diretora americana, demonstra apelo a uma linguagem documental desgastada.
Dentro do universo do documentário, o filme segue a estrutura clássica, desde planos aéreos de cobertura, deslocamentos previsíveis de um país a outro, letreiros informativos e até os depoimentos, quase sempre de familiares ou pessoas próximas da família. No que o longa-metragem pretende ser, um olhar totalizante e definitivo da história chinesa, se aproxima mais de uma fotografia de bairro, diminutiva de um país diverso e gigante como a China. A dinâmica rígida contribui para relações engessadas, entrevistas conduzidas de forma que fariam Eduardo Coutinho chorar (e não de emoção). Nós nos perdemos nas vezes em que Nanfu Wang atua como uma invasora na vida alheia. Parece mais preocupada em capturar o fácil, o previsível, respostas esperadas com o que procura, ao ponto de apelar para a emoção, usando trilhas melancólicas em depoimentos pontuais. A sua visão de mundo contamina e não agrega a narrativa.
É urgente (ironicamente) a necessidade de informar, mais que emocionar. Não pelo teor de seu conteúdo, pois temas importantes, como maternidade, aborto, parentalidade, culpa, negação e nacionalismo, são elencados, mas, talvez, por tentar buscar a objetividade por meio de um contexto claramente subjetivo dos próprios realizadores. A linguagem engessada não ajuda ao tentar unir o pessoal ao político. Há um constante conflito entre o que se propõe a ser, um relato pessoal, americanizado, de uma mãe de volta para casa ao que é: um documentário objetivo, com toques jornalísticos, que busca respostas totalizantes em um contexto contaminado por visões de mundo nem tão diversas assim.
Embora haja relatos contraditórios, o filme, ainda embarca no barco viajante de todos os mundos. São muitos assuntos tocados e poucos aprofundados para terminar em longos minutos de uma jornada pela busca das crianças, que foram relegadas ao orfanato pelo governo chinês com a política de um filho vigente. E, claro, encontradas por americanos, por meio de um banco de dados genéticos, que agora buscam realizar o encontro com a família biológica. Nanfu Wang atua como a mediadora desse processo para em palavras finais fazer a redenção, onde põe em jogo a situação americana e chinesa, quanto ao aborto, em um filme que ela queria ter feito, mas não conseguiu.
João Moreira Salles faz sua visita a china maoísta em “No Intenso Agora” (2018), documentário ensaísta brasileiro, todo feito com imagens de arquivo e narração, ali fica claro a intenção de ser pessoal e político, sem apelar para uma linguagem objetiva. Ali é claramente manipulador e não travestido de uma objetividade nula. Enquanto “One Child Nation”, agradou a Sundance, onde levou o prêmio do júri de melhor documentário, há, portanto, que se procurar o positivo em meio ao caos. Ainda é um filme (em questão aqui) que traz informações sobre uma realidade, do ponto de vista das realizadores, que passaram pela política de um filho só. E que, de certa forma, sentiram a intervenção estatal chinesa na pele. No entanto, evoco a expressão popular: “de boas intenções o inferno está cheio”.