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Onda Nova

Digressão erótica e a rebeldia em cores

Por Vitor Velloso

Onda Nova

“Onda Nova” sofreu interdição integral da Ditadura empresarial militar no ano de seu lançamento, 1983. Agora, em 2024, restaurado e remasterizado em 4K, o filme retorna às salas de cinema em uma co-distribuição da Vitrine Filmes e Tanto Filmes. Dirigido por José Antônio Garcia e Ícaro Martins, o filme não possui uma definição fácil e única, mas a sinopse oficial divulgada trata o longa como uma “comédia erótica e anárquica”, onde o caráter sexual aparece com liberdade ímpar (inclusive para uma parcela dos filmes contemporâneos) e a centralidade da representação feminina possui uma liberdade tampouco vista na cinematografia contemporânea ao lançamento do projeto, e ainda relativamente surpreendente para os longas de hoje em dia.

Existe tanta inventividade e necessidade de ruptura com os padrões estabelecidos durante a ditadura, e o conservadorismo moralista instaurado pela ideologia reacionária, que até os créditos iniciais de “Onda Nova” fogem à regra. Após esta introdução estética e uma partida de futebol, o filme atravessa uma série de sequências que podem soar particularmente desconexas dentro da narrativa, ou pelo menos fragilmente interconectadas, mas que somam à construção, especialmente pela capacidade de deslocar os espaços das ações para um campo simbólico, abstrato em contexto, concreto em ambientação. Dessa forma, o desenvolvimento do longa não se reduz à exposição de uma história particular, mas sim à construção de uma experiência, através da trilha sonora e das cenas eróticas, que sintetizam o contexto da produção e uma verve estética que traduz a iracunda revolta da moral retrógrada estabelecida no momento do lançamento, aliada à liberdade individual dos personagens, tanto na sexualidade quanto nas tomadas de decisão.

Por essa razão, a fotografia, assinada por Antonio Meliande, que trabalhou com nomes como Walter Hugo Khouri, João Batista de Andrade e Mojica, possui sombras rigorosas, uma luz que não tem pudor de atravessar o ambiente e seus personagens, além de auxiliar na construção de um clima tão erótico quanto levemente hostil em determinados segmentos, como uma sedução através da estranheza. Não por acaso, a fotografia é protagonista nesse filme, tomando a centralidade deste universo para si e dando forma às expressões. Assim, a obra se desenha como uma moderna representação de corpos e sentimentos, utilizando a objetiva como uma forma de explicitar os desejos e como manifestação política, na mesma medida. Esse é um dos grandes feitos de “Onda Nova”, ser capaz de equilibrar suas ambições, através de um registro arriscado, que resolve apostar tudo a cada nova sequência, dobrando a aposta sempre que possível. E essa construção baseada em ousadia e digressão faz da cena do ônibus, a caminho da partida de futebol, um desbunde tão grandioso, que faz o espectador saltar da cadeira, com a dinâmica da mise-en-scène, a profundidade de campo, a coreografia, a música, as cores e uma montagem que reconhece os pequenos espaços para transitar dentro de uma cena tão complexa e repleta de elementos.

“Onda Nova” possui uma densidade de temáticas e contextos que realmente impressiona, ainda que possa soar um cinema estranho a uma parcela do público que decidir se aventurar no filme de Antônio Garcia e Ícaro Martins. E talvez essa seja sua maior beleza: não se dobrar a nenhum tipo de convenção ou padronização, seja da ditadura, seja do mercado de forma mais ampla. Dessa forma, o filme explicita sua vocação à rebeldia, através da linguagem e da agressão à moral e aos costumes dos conservadores mais tacanhos.

Ainda que tenha uma falha rítmica ou outra espalhada pela obra, nada impede o sucesso do filme em conseguir trabalhar suas temáticas e formas através de uma rebeldia madura e consciente. Tão suave quanto brutal, “Onda Nova” explode suas cores como um musical erótico ininterrupto, que, no ritmo de suas personagens, atravessa seu campo concreto para atingir uma breve abstração narrativa, extremamente bem-vinda.

A divertida trajetória dos personagens e as cenas de brilhantismo formal de “Onda Nova” demonstram que há espaço para mais relançamentos nas telas de cinema do Brasil, criando um belo exemplo de como fazer uma restauração e uma distribuição que sejam capazes de levar uma série de pessoas às salas de cinema, especialmente as que não teriam acesso ao filme em questão. Vamos torcer para que as distribuidoras brasileiras procurem trabalhar no relançamento de mais obras brasileiras nas salas de cinema.

4 Nota do Crítico 5 1

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