Suspense barato
Por Pedro Guedes
Neil Jordan é um diretor experiente e que conseguiu, ao longo de sua carreira, realizar títulos memoráveis como “A Companhia dos Lobos”, “Traídos pelo Desejo” e “Entrevista com o Vampiro”. Infelizmente, não há muito o que o cineasta possa fazer para contornar a mediocridade de um roteiro como o de “Obsessão” – e que este tenha sido escrito pelo próprio Jordan (ao lado, é claro, de Ray Wright) torna a decepção ainda maior. Aliás, se o filme em si não chega a ser insuportável, é porque as atuações centrais e a direção fazem o máximo possível para conter o desastre, já que, de modo geral, trata-se de um suspense bobo e autoindulgente.
E é uma pena que seja assim, já que os primeiros dez minutos do longa até conseguem introduzir razoavelmente bem as duas personagens principais: enquanto conhecemos a jovem Frances, que perdeu a mãe há pouco menos de um ano e agora vive dividindo um apartamento com uma amiga em Manhattan, também observamos com calma a entrada da francesa Greta na história (não à toa, o título original do filme é “Greta”). A vida de ambas se cruza quando Frances encontra uma bolsa perdida de Greta no metrô, decide devolvê-la à dona e acaba desenvolvendo uma relação de amizade com a mulher. À medida que a trama avança, porém, a senhora vai revelando nuances cada vez mais assustadoras, atingindo um nível de carência que só poderia ser descrito como assustador.
E a partir daí, a história faz cada vez menos sentido, exigindo do espectador um grau de “suspensão de descrença” alto demais para ser mantido. Para começo de conversa, a relação entre Frances e Greta é estabelecida de maneira terrivelmente apressada: sim, no começo dá para entender por que as duas se aproximam (Frances perdeu a mãe; Greta diz ter perdido a filha), mas em vez de desenvolver esta amizade, o roteiro prefere virá-la de cabeça para baixo ainda nos primeiros 20 minutos de projeção. Assim, quando Greta começa a se assumir como vilã da história e a cobrar Frances por “tudo que viveram até então“, o espectador se vê incapaz de sentir o impacto daquela mudança, pois a amizade que ambas construíram e logo desfizeram foi rápida demais. Além disso, confesso não entender certas atitudes de Frances (nem vou tentar entender as de Greta; afinal, ela é completamente doida): sério que, depois de ser doentiamente stalkeada, a garota ainda vai exibir um pingo de compaixão pela assediadora (estou me referindo a uma breve sequência ambientada numa igreja)?
Mas os problemas do roteiro não param por aí (aliás, estão bem longe de parar…), já que, além de não saber para onde ir a partir de sua segunda metade, o filme cria uma infinidade de situações que acabam se tornando hilárias em vez de instigantes – aqui é importante dizer que, mesmo não contendo spoilers, as próximas linhas podem trazer informações que talvez estraguem a surpresa de quem ainda não assistiu a “Greta” (posso chamá-lo assim, pelo título original? Acho “Obsessão” tão sem graça…). Vamos lá: ora, sério que Greta nem se deu ao trabalho de esconder direito as milhares de bolsinhas, deixando a coleção inteira pertinho de um lugar que obviamente seria avistado por Frances? E afinal, qual a necessidade de tantas bolsinhas, já que bastava repetir uma ou duas para cada vítima nova? E por que o filme trapaceia o espectador, sugerindo que uma sequência não passava de um sonho para, em seguida, mostrar que outra sequência também não passava de um sonho e que, na verdade, a primeira era realidade? (Entenderam? Pois é, nem eu.) E o que dizer daquele final, que provavelmente dependeu de uma procura interminável por todas as ruas de Manhattan? E o mais grave: por que diabos Greta achou que mascar um chiclete enquanto conversa com Frances a tornaria mais “intimidadora”? Não, isso é apenas hilário!
Aliás, para um filme capaz de provocar o riso com tanta frequência, é surpreendente que “Greta” se leve tão a sério, criando algumas situações que Jordan e Wright certamente julgaram geniais quando as escreveram – e a confiança que os roteiristas têm acerca de suas ideias é tão grande que não resistem à tentação de escancará-las para o público, tornando elementos aparentemente sutis em artifícios extremamente óbvios (e isso impede o filme de ser daqueles que ficam melhores ou piores à medida que são revisitados). Por sorte, os esforços de Neil Jordan como diretor quase salvam o resultado final: investindo em planos constantemente longos que ajudam o espectador a se sentir dentro de várias daquelas situações (por mais absurdas que estas sejam), o cineasta desenvolve um clima razoavelmente eficaz ao combinar tensão e elegância em diversos momentos, soando particularmente clássico em sua abordagem – e os instantes que enfocam os personagens sob efeito de algum sonífero são interessantes, com lentes “olho-de-peixe” que criam um quadro suficientemente instável.
Já as atuações também fazem um esforço colossal para contornar os problemas do roteiro: comprovando que seu ótimo trabalho em “O Mau Exemplo de Cameron Post” não foi por acaso, Chloë Grace Moretz demonstra estar em busca da recuperação de sua carreira depois de passar anos se dedicando a projetos fracassados, retratando muitíssimo bem a necessidade inicial que Frances sente de compensar o vácuo deixado pela morte da mãe, mas ao mesmo tempo exemplificando o horror de ser stalkeada (algo que, infelizmente, ainda é muito presente em nossa sociedade); por sua vez, Isabelle Huppert se entrega sem reservas ao exagero, divertindo-se ao transformar Greta em uma vilã de novela das oito – e não sei se isto é um elogio; sei apenas que vê-la dançando ao som de Chopin é hilário e que ouvi-la falar em qualquer idioma que não seja francês é… estranho.
e Terminando com um possível “gancho” para uma continuação (ou não – pode ser que aquilo fosse apenas uma tentativa malsucedida de fazer o espectador sair do cinema impressionado com o que acabou de ver), “Greta” provavelmente estaria entre os piores filmes lançados em 2019 caso tivesse caído nas mãos de um diretor menos competente. Do jeito como terminou, é apenas um esforço esteticamente interessante, porém narrativamente estúpido e autoimportante.