O Vazio de Domingo à Tarde
Crônicas darwinianas que não protegem o próprio querer
Por Fabricio Duque
Durante a Mostra de São Paulo 2023
Um domingo à tarde traz embutido um simbolismo estrutural de nosso imaginário popular: a melancolia da espera de um novo ciclo que se começa na segunda-feira. Essa sensação pode ser traduzida como um vazio entre o descanso de dois dias do final de semana e a ansiedade iminente de mais uma semana. Quem nunca sentiu um emoção estranha de existir em um “dia morto” ao saber que essa “felicidade” está indo embora? Todo essa estrutura conservadora, de tradicionalismo familiar, massifica a ideia de que após o Domingão da Rede Globo, seguido de algum tipo de jogo de futebol de algum campeonato e finalizado com o Fantástico, todo esse “respiro” acabará e mais uma guerra diária se iniciará. Pois é, não só vivemos em tempos mortos, encontrando pequenas diversões, como existimos dentro de um padrão burocrático de uma vida “missionária”. Isso gera uma consequência paradoxal e utópica de se buscar opções e caminhos para retirar os impedimentos do sonho desejado. Chega a ser lógico e óbvio: quem não tem nada sempre trilhará a jornada de menor impacto, de mais fama e de dinheiro imediato. Porque ao tomar a decisão do ir, após aceitar a submissão resignada, é na urgência que reside a forma da crença, absoluta, ingênua e quase irracional. É nesse mote que o realizador brasileiro Gustavo Galvão constrói seu filme “O Vazio de Domingo à Tarde”, exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2023.
“O Vazio de Domingo à Tarde” imprime uma característica intrínseca de seu diretor: a de criar um cinema de esquetes, de instantes mais orgânicos, de permissão coloquial mais caseira e artesanal. E aqui ainda tem um plus: o roteiro é co-assinado, em parceria total, por Cristiane Oliveira (dos excelentes “Mulher do Pai”, “A Primeira Morte de Joana”, “Até Que a Música Pare”). Assim, essa mise-en-scène acontece no cotidiano mais sensorial, de sinestesia ficcional, de metafísica dos três “as”: aguda, absurda e abstrata. Há uma maior liberdade aos excessos interpretativos, aos prolongamentos da narrativa, às improvisações das interferências sonoras e casuais do ambiente real ao seu redor. Gustavo não quer nos distanciar da percepção da ficção, pelo contrário, quer nos aproximar de toda uma sugestão à identificação meta da própria linguagem mais crua, mais nua e mais encenada. Percebe-se mais esse ambiente, entre a reconstituição e o tom documental, especialmente controle dos movimentos e comportamento. Principalmente porque Gustavo traz cenários transitórios e passageiros, como uma estrada interestadual. “O Vazio de Domingo à Tarde” é uma obra que externa a cognição do psicológico pela automação das influências desse meio em que se vive.
“O Vazio de Domingo à Tarde”, de Gustavo Galvão (de “Inventário de Imagens Perdidas”, “Ainda Temos a Imensidão da Noite”, “Nove Crônicas Para Um Coração Aos Berros”, “Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa“) reformula com a estética o modelo folhetim das motivações universais que em determinado momento, sem poder fugir, afetam todo e qualquer ser humano enquanto indivíduo social, como a vingança, a projeção espelhada das máscaras do outro. De se desejar ter a “grama mais verde do vizinho”. Sim, é inerente o querer mais pela transposição de se escolher a transferência como a única opção disponível e radical. Isso quando alimentado desencadeia o transtorno da obsessão. De se conseguir a todo custo o objeto do desejo. É, mais quando uma personagem vulnerável adentra nesse novo mundo, o deslumbre ao glamour é inevitável. É a primeira dose da droga. Um vício adquirido. Tudo isso gera outros questionamentos morais: se o que se quer é a fama, então os fins justificam os meios? Sexualizar e/ou “vender” o corpo não é apenas uma etapa para o resultado final? Pois é, isso tudo me faz lembrar de uma exposição “Proteja-me do Que Eu Quero”, de Jenny Holzer, que assisti há muitos anos em Nova Iorque. A artista conceitual americana teve a ideia quando numa viagem ao Brasil viu essa frase em um caminhão numa estrada interestadual.
Pois é, todo essa questão de sonho é muito mais complexa que se imagina. Na cabeça da personagem principal, tudo é possível. Essa ingenuidade, entre lidar com o estigma, com a necessidade de se tomar medicamentos, de jogos, evoca também outro simbolismo: o ritual de ser um mulher. De que ainda em 2024, o ser feminino precisa se preocupar em “conservar” essa imagem representativa (de interpretar diversos papéis), entre o cotidiano de um “risoto de abóbora” e a realidade mais naturalista de uma metalinguagem da criação. Sim, ”O Vazio de Domingo à Tarde” é assim, em crônicas: um recorte antropológico sobre os comportamentos e decisões humanas em um meio tão hostil de verdades particulares e de quereres individualistas que, egoisticamente, acham que podem ser maiores que o próprio ser comum coletivo. Este é um filme que trabalha a (tentativa de) esperança pelo realismo, dentro de um cinema que reflete a verdade pela patologia fisiológica dos anseios mais instintivos do ser. Como impedir então que o humano seja diferente disso? Pois é, Darwin sempre esteve certo.