O Traidor
O Arrependido
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2019
“O Traidor”, realizado por Marco Bellocchio em 2019, é um caso bem sucedido de coprodução internacional – com um cineasta de reputação sólida em escala global, como é Bellochio, debruçando-se sobre a saga de Tommaso Buscetta, o maior “arrependido” da história da máfia. Não é pouca coisa. Dono de uma vida, digamos, agitada – Tommaso tornou-se com o tempo uma figura influente que impunha respeito, embora sua posição fosse, como dizia, a de um simples “soldado”. Os chefes da cosa nostra buscavam seu conselho, ele era inteligente e hábil: tudo isso começou a ruir quando dois filhos do primeiro casamento, Benedetto e Antonio, desapareceram, para nunca mais serem encontrados; e, na sequência, pelas mortes do irmão Vincenzo, genro Giuseppe Genova, cunhado Pietro e quatro de seus sobrinhos. Após anos de serviço leal, Buscetta inicialmente mantém a boca fechada quando é preso pela polícia por acusações de tráfico de drogas – foi detido em São Paulo, em outubro de 1983. No filme, em uma dramatic license de encher os olhos, a prisão se dá numa mansão com vista esplêndida da baía de Guanabara: foi extraditado para a Itália em junho de 1984, onde tentou suicídio por ingestão de barbitúricos. Não se sabe se a tentativa era para valer, ou chantagem emocional – o fato é que, desiludido, concedeu longo depoimento para o juiz antimáfia Giovanni Falcone, adquirindo em definitivo a fama de pentito, arrependido. Foram 45 dias de revelações sobre a dinâmica mafiosa, incluindo rotinas internas, hierarquia, nomes, crimes, exceto relações com altas esferas da política italiana, já que o “arrependido” julgava, tout court, que o Estado italiano não estava suficientemente maduro para absorver informações dessa lavra (Falcone, claro, insistiu). Seu testemunho no famoso “Julgamento Maxi”, no qual foram indiciados 475 mafiosos por uma infinidade de crimes – e condenados 342 – foi fundamental. O resto da existência de Tommaso foi no Estados Unidos, onde terminou seus dias aos 72 anos “morrendo na própria cama”, como desejava, cercado pela família e seguranças da DEA, em local à época secreto – mas que hoje sabemos, foi na Florida, o destino de nove entre dez “aposentados” da máfia.
Como contar uma história dessas? O senso comum diria que esse é dos thrillers onde ficção e realidade se misturam, se hibridizam. A mitologia que o cinema americano construiu em torno das mobs criou esse mundo paralelo de códigos de honra e outros sofismas para, em última análise, espetacularizar a violência. Francis Coppola e Martin Scorcese são referências dessa gramática audiovisual que não só naturaliza assassinatos e vinganças, como também gera uma empatia complexa e ambígua da audiência com os personagens. “O Traidor” joga com esses artifícios, mas procura imprimir um efeito de reportagem que adiciona uma camada extra na trama, lembrando o respeitável público de que se tratam de ações reais e criminosas. O “Julgamento Maxi”, por exemplo, foi filmado em plano geral como se fora uma tragédia grega: heróis, vilãos, coro e mediação da força da lei: nesse particular, a linguagem do filme afasta-se dos previsíveis cenários de tribunal, outro espaço dramático saturado da narrativa clássica. Tommaso Buscetta senta-se de costas para os acusados e de frente para os juízes, Falcone no centro, ignorando impropérios e vaias dos ex-companheiros, e das respectivas famílias que se encontravam na arquibancada. Foi desse modo que aconteceu: o julgamento ocorreu em Palermo, na Sicília, entre fevereiro de 1986 e janeiro de 1992, com maior intensidade entre 1986 e 87. Foi realizado em um tribunal estilo bunker especialmente construído para esse fim, dentro da prisão de Ucciardone, em Palermo. Em maio de 1992, o juiz Falcone foi brutalmente assassinado — juntamente com esposa e guarda-costas — quando o comboio em que viajava foi atingido pela explosão de uma carga de 1000 kg de TNT, previamente colocada no túnel de drenagem, sob a rodovia. A detonação foi acionada por controle remoto. O plano que capta a explosão dentro do carro, semelhante ao carro que cai no abismo no magnífico drama que Bellochio dirigiu em 1965, “De Punhos Cerrados”, é espetacular: espetacular aqui no sentido em que Guy Debord usava, uma exaltação da visualidade promovida pela espetacularização midiática, pela disseminação do poder do espetáculo na vida social.
Pierfrancesco Favino é o ator que encarna Buscetta, excelente – com destaque também sua esposa brasileira, Maria Fernanda Cândido. Outra camada de realismo em “O Traidor” é o português falado entre marido e mulher. Ao final, prevalecem arrependimento e perdão.