O Rei do Riso
A praga dos filmes biográficos
Por Giulia Dela Pace
Festival Internacional de Veneza 2021
Um verdadeiro Pulcinella – o herói desastrado do teatro dell’arte do século XVII que corriqueiramente é visto como um oportunista simpático –, Eduardo Scarpetta, ou melhor Felice Sciosciammocca o “Rei do Riso”, foi uma das grandes figuras do teatro italiano do final do século XIX. O também dramaturgo, começou a atuar aos quatro anos de idade e constituiu-se como uma das grandes figuras da dramaturgia e atuação napolitana do “teatro popular”. O legado do protagonista do filme biográfico, dirigido por Mario Martone, perdura até mesmo após sua morte, pois três de seus filhos, por anos, foram considerados grandes nomes do teatro. Além de terem passado a paixão pela vocação também aos netos de Eduardo Scarpetta. E aqui temos um problema: como representar a vida, a personalidade e os conturbados eventos da vida de uma pessoa, ainda que pública, em apenas duas horas? Aí vem a resposta: com novelão dramático.
O “Rei do Riso” é um recorte de um momento específico na vida de Scarpetta, quando a lenda do teatro italiano decide escrever uma paródia da obra de Gabriele D’Annunzio – “La figlia di lorio” – e acaba por ser processado pelo autor acusado de plágio. Nos momentos iniciais o filme expõe ao espectador qual a personalidade, caráter e hábitos de Scarpetta, ainda que de forma reducionista. Mas como produzir uma biografia para cinema em um drama de apenas duas horas? Como esse novelão das nove poderia respeitar as figuras retratadas e o espectador em um filme onde todos os elementos de linguagem colaboram para uma ambientação realista e não poética de interpretação dos fatos? Daí um dos maiores escorregões das biografias não documentais: a falta de caráter em demonstrar imparcialidade de opinião sobre a figura retratada, quando essas obras passam longe de serem não enviesadas.
O longa caminha de forma pulsante entre aflições familiares crescentes que cercam Eduardo, interpretado por Toni Servillo, e a forma como ele compromete a família com sua companhia de teatro e projetos profissionais, mas de uma forma quase genérica. Não é à toa que sem Servillo, Scarello não seria representado à altura, pois os olhares vacilantes, sutilezas na interpretação e semblante carregado de uma melancólica alegria infantil garantiu ao Pulcinella napolitano uma representação emocionante.
Embora o brilho do ator ajude a equilibrar os fracos do roteiro, ainda não ofusca o fato de que Martone e Di Majo tenham enxergado discussões que concernem também ao teatro contemporâneo e políticas – no sentido social e legislativo – como meros elementos que serviram como obstáculos na “jornada do herói” de Eduardo.
Dentre a deprimente lista de obras contaminadas pela infeliz praga desse “estilo” de biografia estão: Elis (2016), Tim Maia (2014), Maysa: Quando Fala o Coração (2009), Somos Tão Jovens (2013) e Chatô: O Rei do Brasil – esse merece especial lugar na lista pelo atraso de incríveis vinte anos para o resultado alcançado pelo esperado “Cidadão Kane brasileiro” – um exagero… E a lista não para por aqui. Mas o que todos esses filmes têm em comum é a capacidade de servir apenas como uma fofoca disfuncional sobre uma pequena parcela da vida de alguns, para públicos massivos, pois transformam todos os subtemas, não apenas em roteiros mal desenvolvidos, mas em simplificações do biografado em questão. Além de se utilizarem de artifícios baratos, como cenas de sexo colocadas de modo que induza o espectador a questionar sobre a integridade do retratado, sem a menor necessidade. Como podemos ver em “Rei do Riso”, por exemplo, tendo em vista que a sua numerosa quantidade de filhos fora do casamento já indicaria essa falta de caráter por si só.
E esses elementos de diálogos, introdução de personagens e suas interações acabam por existir apenas como um grande disparo de informações sobre os espectadores numa tentativa quase desesperada de induzi-los a ver sob a perspectiva do cineasta, mesmo que a sensação ao assistir o filme seja de que estamos em um ambiente neutro onde fatos, tal qual ocorreram, estão sendo apresentados. Assim, essas biografias tendem a ser amadas por todos os “fofoqueiros de plantão” porque entregam inúmeras informações em um curto período de tempo, mesmo que sem justificar ações de personagens, assim como não aprofundam em dicotomias da história e muitos menos em questões políticas que poderiam ser maravilhosamente bem feitas, como desenvolver melhor a discussões sobre a detenção da arte entre as elites artísticas – ponto adentrado de forma pobre no longa.
Tal como em “Rei do Riso” temos uma poderosa discussão sobre definição de arte, quem a produz, quem a reproduz e quem a determina. Uma discussão valiosíssima, mas que acaba por tropeçar nesses corriqueiros artifícios de cinebiografias e suas armadilhas. Especialmente o afogamento no raso quando Martone e Di Majo, que assinam o roteiro, preferem abordar o máximo de eventos, uma quantidade desnecessária de personagens e fatos de forma ligeira ao invés de se aterem a menos elementos que tivessem maior possibilidade de penetrar nas crises e história de Scarpetta.
Assim, um filme biográfico de um grande dramaturgo da comédia fica como uma grande piada de roteiro ao ser seduzido por um exagero repleto de vazio.