O Professor Substituto
O Mal Estar Prematuro
Por Michel Araújo
Durante o Festival Varilux de Cinema Francês 2019
Num mundo com incessantes e incontáveis ameaças à segurança – e mesmo ao espírito humano -, a tomada de consciência de seus arredores se torna um peso quase inconcebível. A relação entre o ser, o seu Eu, a civilização e os outros, tendo ciência na integralidade dos dias das inúmeras desgraças que acometem a sociedade só pode gerar o mais autêntico mal estar, remetendo ao texto de Freud. E a tendência nas últimas gerações é que essa emancipação auto depressora aflore cada vez mais cedo nos indivíduos.
Em “O Professor Substituto” (2019), a história revolve em torno de um grupo de seis estudantes super dotados do terceiro ano de um colégio de elite do ensino médio cuja inteligência num primeiro momento parece ser um pilar de arrogância e hostilidade para com seu novo professor. O professor em questão, o jovial Pierre (Laurent Lafitte), entra no colégio para substituir um antigo professor que tentou cometer suicídio na frente dos alunos, e está hospitalizado. Ao longo de sua tentativa de auxiliar os alunos, Pierre recebe diversas provocações por parte desse específico grupo de seis alunos acerca de sua metodologia, competência, sua posição como substituto e eventualmente mesmo acerca de sua homossexualidade.
A relação entre os próprios alunos começa a se acalorar também, com o desenrolar da trama. Os outros alunos menos proeminentes que esse pequeno grupo os agridem constantemente, e o que mais encabula Pierre é que os alunos agredidos aceitam e mesmo parecem querer que as agressões continuem. Mais para frente Pierre vê os alunos se reunindo em lugares desolados para fazer o que parecem ser treinamentos de resistência física, onde se espancam e mesmo se afogam. Isso explicaria o porquê de não se importarem com as agressões no colégio. Parece que querem provar sua superioridade tanto intelectual quanto fisicamente.
Ao longo de “O Professor Substituto” algumas formas diferentes de linguagem vão se misturar com a clássica narrativa. Numa chave mais simbólica alguns motivos vão se repetir e mesmo se intensificar, como o caso dos animais que aparecem fugindo em bandos de algum perigo que não é mostrado, ou das baratas na casa de Pierre – a alusão à Metamorfose de Franz Kafka não é coincidência, visto que o protagonista está escrevendo uma tese sobre o autor austríaco.
A narrativa de “O Professor Substituto” é assumidamente kafkiana em diversos aspectos. Tal qual um Gregor Samsa em “A Metamorfose” ou um Josef K em “O Processo”, Pierre aqui está preso numa atmosfera onírica – mais próxima de um pesadelo do que um sonho – que só se mostra cada vez menos compreensível a cada tentativa de racionalizar. Há um clima de terror latente na própria sociedade que circunscreve a narrativa, à exemplo o fato de os alunos terem de fazer constantes treinamentos de segurança em caso de atentados à escola – massacres, tiroteios.
E enquanto para a maioria ali isso parece apenas um procedimento padrão de segurança, tomaremos noção de que esse pequeno grupo de seis alunos tem plena ciência do mal que isso representa, assim como diversas outras falhas estruturais da sociedade que se passam por corriqueiras. Essa visão fica clara quando Pierre encontra num dos campos de “treinamento” desse grupo uma caixa com vários dvd’s, cujos conteúdos são montagens de imagens perturbadoras como lixões, praias poluídas, usinas nucleares e abatedouros de animais combinados com diversos monólogos desses alunos refletindo sobre a autodestruição da sociedade e teorizando acerca do fim da humanidade como um grande suicídio coletivo – aqui suicídio entendido como metáfora para uma catástrofe qualquer provocada pelo homem.
Aqui outra nova linguagem, que não o clássico narrativo e nem o surreal simbólico, mas uma espécie de experimentação com vídeo ensaio que foi inserida na narrativa com sutileza. Há enxertos de pequenos filmes experimentais apocalípticos na narrativa, os quais claramente afetam Pierre pelo seu pessimismo abismal, e mais ainda por se tratarem de pessoas tão jovens.
A maneira como Pierre é afetado, e como ele irá eventualmente reagir e se relacionar com esses alunos entrega a verdadeira faceta deles, mais do que as próprias atitudes dos mesmos. Por mais que eles o provoquem, por mais que o intimidem, ele sempre irá defendê-los, quando uma garota do grupo parece estar perto de se afogar num dos “treinamentos de resistência”, Pierre irá intervir e tirar a garota da água. Ele se preocupa com os alunos acima de tudo, ele não se conforma com essa auto consciência por parte deles, não só de sua fragilidade num mundo decadente como de seu distanciamento do restante das pessoas por conta dessa maneira de pensar.
Pierre compadece, ele quer ajudá-los, e no fundo eles querem ser ajudados, apesar de terem perdido as esperanças. Na cena ao final, quando todos observam uma catástrofe ao horizonte e Pierre dá a mão para uma das alunas, e logo vemos que todos estão de mãos dadas, fica claro que mais do que provocar o professor para saber se ele estaria à altura para ensiná-los francês, eles queriam saber se ele teria condições de ser cúmplice nessa noção plena do destino final do ser humano.
O que motivou o outro professor a tentar se suicidar permanece em aberto, porém pode-se deduzir que ele tenha sabido demais e não tenha aguentado olhar para a realidade através dos olhos desse jovens que, mais do que pessimistas, estão apavorados. Também é possível deduzir que a especialização de Pierre em Kafka o torne mais capacitado a contemplar a condição humana sob essa ótica do pavor. A lógica da vida real mais se equipara à uma ficção literária de terror psicológico surrealista.