O Policial e a Pastora

Estranhos no ninho

Por Pedro Sales

Durante o Festival Olhar de Cinema 2023

O Policial e a Pastora

A onda de conservadorismo que tomou o Brasil parece mais um tsunami. Se antes, muitas vezes, as pessoas hesitavam ou temiam expor seus preconceitos, hoje fazem em alto e bom som, na rua, nas conversas de família ou na internet. Estes pensamentos, infelizmente, estão presentes em todas as partes, como nas instituições de segurança e religiosas. Em meio a esse discurso já hegemônico nesses espaços, a diretora Alice Riff  desenvolve um cinema de exceções ao encontrar dois tipos que divergem dos seus ciclos. O documentário “O Policial e a Pastora”, que integra a mostra Competitiva Brasileira do Festival Olhar de Cinema, estabelece como argumento central essas duas pessoas que fogem à normalidade de seus grupos: um policial notadamente antifascista e uma líder religiosa que milita pela igualdade de gênero. A obra, então, se envereda pelas contradições que ambos representam para os demais e as eventuais intervenções da dupla no processo de filmagem.

“Ah não! Você aqui de novo?”, é com esses dizeres, escritos no capacho, que a cineasta é recepcionada por Alexandre Félix, o policial do título. Este, no entanto, não é o único elemento que já evidencia sua personalidade. A camisa escrita “written and directed by Spike Lee” (escrito e dirigido por Spike Lee) é uma forma de reafirmar sua negritude e espírito revolucionário. Já afastado da corporação, o policial aparentemente quis se impor contra as corrupções e se engajar em causas sociais. Valéria Cristina, a pastora, emancipou-se de um relacionamento abusivo e fundou a organização Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG). O discurso dela, portanto, associa o cristianismo ao feminismo, propondo uma superação do patriarcado. Na estrutura fílmica, a diretora Alice Riff promove uma separação bem marcada entre os personagens, cada um ganha uma metade só para si – ou quase isso, no caso de Valéria.

Existe em “O Policial e a Pastora” uma participação muito direta da realizadora. A montagem, desse modo, não oculta as trocas entre diretora e personagens, pelo contrário, Riff se apresenta nestes momentos e na narração, que se torna um fio condutor da trama. Essas não são, no entanto, as únicas inserções poéticas ao longo da obra. Tanto Alexandre quanto Valéria escrevem e leem seus textos para a câmera. Em um tom mais desesperançoso e pessimista, o policial faz uma cronologia do pior ano de sua vida, em que a dor e a solidão foram suas principais companhias. Por outro lado, a pastora lê o relato como uma certidão de renascimento, uma renovação espiritual que proporcionou as condições para a criação da EIG. Ou seja, mesmo que os dois se diferenciem de seus pares, eles próprios são bem distintos. Contudo, se há algo que une os dois é a participação ativa na feitura do documentário. Não existe inocência diante da câmera, eles querem controlar a imagem e também a própria montagem. “Aí você corta essa parte”, diz Valéria para Alice em vários momentos. Já Alexandre pede para não ser representado como um herói, pois isso fomenta uma “idolatria que não constrói nada”. Dessa forma, a diretora evidencia esse “duelo” com seus personagens, ela tenta impor, mas às vezes deve ceder – se não o filme jamais andaria. É interessante também o contraste entre o policial e a pastora. Ele concentra a narrativa em si próprio, e ela procura dividir o protagonismo com suas colegas do grupo – se a diretora queria um “prato”, ela oferece um “banquete”

Apesar dessa transparência na filmagem e até eventuais quebras com o documental, como o jogo cênico que Alexandre topa participar, o filme é extremamente lacunar. Presa nos apartamentos, a câmera quase nunca sai desse clima de intimismo, dos relatos. Em determinado momento, por exemplo, Alexandre diz: “Me envergonho de ter me tornado o policial que me tornei”. Porém isso soa vago quando o personagem deliberadamente omite os motivos disso, inclusive ele até dá indícios de onde achar essa resposta, mas não é interesse da obra explorar essa faceta, por mais que o espectador se sinta instigado e, posteriormente frustrado pela recusa em mostrar as respostas. Assim, a obra parece muito acomodada no que seus personagens dividem – ou não – com o público, “arrancar essas verdades” não é uma opção e tampouco a intenção. Valéria e suas amigas da EIG, por outro lado, são muito mais abertas em expor esses fantasmas, afinal a reunião e o compartilhamento de relatos se apresenta quase como uma catarse coletiva.

O Policial e a Pastora” é um filme que se sustenta na dicotomia entre seus personagens questionadores e pensadores. Ser diferente dos demais, sobretudo nos espaços que ambos frequenta(vam), além de ser um ato de coragem, pode trazer consequências. Nesse sentido, a comodidade que o documentário possui – uma câmera que apenas se senta para ouvi-los, mas que não vai atrás de outras pessoas para enriquecer o retrato dos personagens – é um fator que limita a potência do longa, é o famoso perigo da história única, principalmente quando contada apenas pelos protagonistas. Em contrapartida, a decisão criativa de Alice Riff em demonstrar as negociações com os personagens e a resistência deles em acatarem passivamente as orientações da direção transmite a realidade de como é feito um documentário e também reforça o ideal questionador do policial e da pastora.

2 Nota do Crítico 5 1

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