O Pacto
Magia sem mágica
Por Pedro Mesquita
O jovem e promissor poeta Thorkild Bjørnvig (Simon Bennebjerg) recebe um convite para comparecer à casa da famosa escritora Karen Blixen (Birthe Neumann). Lá, ele fica surpreso com a proposta que ela lhe faz: Blixen quer que o jovem escreva a sua autobiografia. Um pedido estranho, visto que os dois mal se conhecem e ela sequer havia lido a sua obra (Blixen, no entanto, justifica-se dizendo ter ouvido de uma amiga grandes coisas a respeito de seu livro).
Ele recusa, mas os dois permanecem em contato. Numa festa dada na casa de Blixen, Thorkild acaba descobrindo que essa tal amiga não conhece o seu livro e que, portanto, a Baronesa — como a chamam — havia mentido para ele. Ora, por qual motivo uma mulher tão poderosa sentiu a necessidade de mentir para poder conhecer um jovem como ele?
Essa situação estranha dá partida à trama de “O Pacto”; coloca-lhe uma atmosfera de suspense. Vamos além: em uma visita à casa de Thorkild, Blixen demonstra vontade de ajudá-lo a alavancar a carreira e lhe propõe o tal pacto sugerido pelo título; ele deveria obedecê-la incondicionalmente e, em troca, ela faria de tudo para promover o seu sucesso profissional.
Como veremos à medida que a narrativa se desenrola, o “pacto” aqui não se refere somente ao acordo feito entre os dois, mas também ao acordo entre ela e o Diabo. Eis, finalmente, o ponto em que gostaríamos de chegar com toda essa descrição: “O Pacto” apresenta, gradativamente, pistas que nos levam ao domínio do realismo fantástico. Parte-se de uma história baseada em fatos reais, mas a sua adaptação cinematográfica embeleza esses fatos com elementos mágicos (e não trataremos aqui de discutir as semelhanças e diferenças entre o filme e os fatos, pois não é disso que a crítica séria deve tratar).
Um dos eventos que entrega a presença de magia no universo do filme é quando Blixen causa, com o poder do pensamento, um acidente que fará Thorkild se hospitalizar. É aí que ela oferece ao rapaz que se mude para o seu casarão, onde eles poderão realizar o seu pacto longe de influências externas. A partir desse momento, o casamento dele com sua esposa Grete (Nanna Skaarup Voss) começa a se deteriorar.
É, portanto, por mais de um motivo que “O Pacto” nos lembra de Alfred Hitchcock: além do suspense ambientado em lugares fechados, temos aqui um outro motivo tipicamente hitchcockiano, o da figura materna superprotetora, que efetivamente “castra” a protagonista, prejudicando a sua vida amorosa. No entanto, ao contrário do diretor inglês, Bille August passa longe de trabalhar esses temas com o mesmo êxito.
O problema que se evidencia aqui é o flagrante descompasso entre forma e assunto. O filme, como falamos, envereda por caminhos crescentemente fantásticos e pretende apresentar, por meio do seu roteiro, uma situação aterrorizante segundo a qual uma personagem má vai corrompendo aos poucos a personagem boa. Mas tudo isso fica no plano da intenção e nunca se concretiza: no lugar das composições fortemente contrastadas de Hitchcock que nos fazem sentir, através dos jogos de luz e sombra, o clima de suspense pretendido, vemos aqui os ambientes e as personagens quase sempre iluminadas de maneira suave e difusa; vemos as composições demasiadamente brancas; o quadro estático ou pouco expressivo… o que, diante do tema da perversão colocado pelo roteiro, é um franco desperdício. Onde o tema sugere mistério, a forma propõe claridade; onde o tema sugere densidade, a forma propõe leveza; onde o tema sugere terror, a forma propõe no máximo uma leve sensação de fastio (lembrar da casa da escritora, quase que completamente tomada pelo verde).
Essa discordância total entre a ideia do filme e a manifestação física dessa ideia não é proposital. Não estamos diante de um iconoclasta, de um artista autoconsciente que pretende explorar o aspecto clichê dos temas subvertendo-os formalmente. Não: “O Pacto” é o inverso disso; trata-se de um filme acadêmico — toda a sua concepção estilística o precede; a linguagem do filme é aquela herdada de tantos outros, consolidada ao longo da história como uma série de regras —, mas que “joga” muito mal a partir dessas regras que ele propõe a si mesmo. Note-se, por exemplo, o uso esparso e incompreensível de jump cuts que elidem certos pedaços da narrativa, principalmente aquele em que Thorkild, sentado à mesa com sua esposa que chora, tenta convencê-la de que o relacionamento dos dois não está perdido. Não à toa André Bazin formulou a sua teoria da “montagem invisível”: nesse momento do filme presenciamos claramente o efeito causado por um corte desajeitado; ele minimiza o drama, tornando um momento supostamente intenso em algo bobo.
Os jump cuts de August não são os de Godard em “Acossado” (1960). Esse, sim, um artista de vanguarda, para quem o fazer cinematográfico representa um exercício de invenção, um exercício de constante reflexão sobre a forma. Em “O Pacto”, o pensamento sobre a forma praticamente inexiste; talvez isso ajude a explicar o seu fracasso.