O Mestre da Fumaça
Kung Fu(mado)
Por Pedro Sales
A influência e herança do cinema hollywoodiano é bem perceptível no cinema brasileiro. Durante as décadas de 30 e 50, produtoras como a Cinédia e Atlântida emulavam a estética dos filmes estadunidenses, criando até um star-system, em que os atores representavam sempre o mesmo arquétipo (mocinho, vilão…). As vanguardas europeias também influenciaram o cinema do país. O Cinema Novo, por exemplo, bebe da Nouvelle Vague da França. A indústria cinematográfica oriental, no entanto, parece não ter tido a mesma sorte, poucos filmes usam o mesmo estilo e narrativas da região. “O Mestre da Fumaça” se diferencia neste aspecto. Ao se inspirar nos filmes de artes marciais e ação de Hong Kong, de clássicos com Bruce Lee aos policiais de John Woo, o longa de estreia dos diretores André Sigwalt e Augusto Soares presta tributo ao gênero adicionando a comédia escrachada.
Na distante China, em 1949, um mestre (Ravel Andrade) é envenenado, ou melhor, tem sua maconha envenenada. Sua aprendiz e algoz promete tirar a vida de seus descendentes pelas próximas duas gerações, dando origem à Vingança das Três Gerações. Anos depois, no Brasil, os irmãos Gabriel (Daniel Rocha) e Daniel (Thiago Stecchini), netos do antigo mestre, são os últimos a enfrentarem a maldição. A máfia chinesa, então, os persegue. Quando a situação foge do controle, Gabriel procura o Mestre da Fumaça Yan Wu (Tony Lee), detentor de um estilo singular que mistura maconha e artes marciais. Nota-se, portanto, por meio dessa premissa, que a obra em si não se leva tão a sério. A questão que envolve a planta se associa, ainda, com um subgênero de filmes chamado stoner movies, geralmente comédias que os protagonistas são maconheiros e desajeitados. Um exemplo é “Queimando Tudo” (1978), protagonizado pela icônica dupla Cheech e Chong, os quais inclusive são homenageados aqui com dois personagens secundários bem semelhantes, o Zhuang e Zhan.
A alternância de tons entre o humor e a ação funciona bem. Aliás, em muitos momentos, Sigwalt e Soares incorporam a comédia às lutas. Os vilões, por sua vez, possuem um ar muito caricatural ou até histriônico. Caine (Tristan Aronovich), que parece uma espécie de David Carradine, é um norte-americano capacho da máfia que mal sabe em que país está, ele é cruel, mas não deixa de ser tosco. Um ponto importante de se salientar acerca de “O Mestre da Fumaça” é a clara intencionalidade em ser tosco. O filme abraça esse estilo, seja por meio do pastiche, ou do exagero nas performances, porém não pretende se desvincular dele. Isso exige coragem, sobretudo em tempos que a verossimilhança parece ter mais valor que a criatividade artística. Brincando com os combates, o humor e, claro, com centenas de situações-piadas que envolvem maconha, às vezes o longa pende mais à comédia do que à ação. No treinamento para a Arte da Fumaça, à moda de um senhor Miyagi, Yan Wu treina seu pupilo testando sua destreza, em vez de pintar cerca ou lixar assoalho, ele deve enrolar um baseado, fumar em um bong.
Se o tosco está quase sempre em voga durante a rodagem em um aspecto temático – a própria arte marcial cannábica já pende ao absurdo –, isso não significa que a parte formal tenha o mesmo tratamento. A introdução prontamente estabelece um cuidado técnico em coreografar as lutas, lançando mão de estilizações como a muito bem vinda câmera lenta. A montagem é ágil e busca acompanhar os frenéticos movimentos de combate, o que atribui dinamismo e senso de urgência na ação. Além das boas coreografias, o longa brinca muito com as fusões e transições. A fumaça, elemento central da vida dos personagens e para a transformação física de Gabriel, serve também como dispositivo para essas mudanças de cena. Entretanto, a obra perde um pouco do fôlego e acaba engasgando na sequência de treinamento, a qual parece um pouco mais longa do que o necessário para estabelecer a ideia.
“O Mestre da Fumaça” é uma ação de comédia ousada. Em um país onde a maconha ainda é duramente criminalizada, usá-la como artifício principal para um estilo de arte marcial milenar é no mínimo corajoso. Pelo fato de não levar a sério demais a premissa, o filme consegue ser um divertimento leve, mas não digo unânime, pois a resistência à temática pode impedir a fruição de determinados públicos. O tributo aos filmes de artes marciais é visivelmente apaixonado, assim como o é para o subgênero dos stoner movies. O contraste entre situações cômicas exageradas e a dedicação técnica reforça que, mesmo com os desafios do cinema independente, é possível realizar com qualidade obras criativas que não se envergonham do caráter bobo. A brisa proposta por André Sigwalt e Augusto Soares, portanto, pode bater legal para quem se deixar levar pela onda, ou melhor, pela fumaça.