O Menino que Fazia Rir
A Importância de ser Prudente
Por Jorge Cruz
Os primeiros momentos de “O Menino que Fazia Rir” podem dar a entender que sua trama ambienta o protagonista em uma realidade meritocrática, já que ele conta que seu avô gostava de dizer que ele deveria se esforçar mais. Porém, o longa-metragem dirigido por Caroline Link (“Lugar Nenhum da África”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2003) não guarda qualquer relação com esse entendimento. Pelo contrário, é talvez um dos grandes exemplos dos últimos anos de sucesso comercial aliado a um ótimo filme.
A produção foi a quinta maior bilheteria da Alemanha em 2018, perdendo apenas para quatro produções norte-americanas. Seu apelo junto ao público local se dá porque a obra traz a infância de Hape Kerkeling, um dos maiores comediantes do país. A aposta foi alta e a escolha de Link no papel de diretora e de Ruth Toma como roteirista (adaptando a autobiografia de Hape) é essencial para que as sensações tencionadas no projeto sejam alcançadas de forma equilibrada.
O filme começa em 1971, quando o jovem Hape (Julius Weckauf), então com dez anos, precisa encarar algumas importantes mudanças em sua vida. Ele sairá de uma cidade pequena, onde residia com seus avós, para uma cidade maior, passando a dividir seu espaço apenas com a mãe Margaret (Luise Heyer) e seu irmão Matthes (Jan Lindner). Como uma criança acostumada com o contato com os avós, o protagonista se permite ser mais sonhador do que o normal. Sua infância é retratada de maneira saudável, com uma avó, por exemplo, lhe dizendo que ele deve fazer o que tem vontade, sem se preocupar com os outros.
Porém, a realidade não é tão colorida assim – e é importante fixar esse vocábulo, já que a cor é o elemento mais importante de “O Menino que Fazia Rir”. A doença dessa avó e o bullying sofrido na escola fará com que Hape, no auge de sua pré-adolescência, reveja seus conceitos. Nessa auto-análise, ao observar que as pessoas acham graça dele involuntariamente, ele decide que o humor será sua ferramenta, sua máscara para encarar a dureza da vida.
As representações de “O Menino que Fazia Rir” dosam seu ritmo de maneira que o filme não descamba nem para o melodrama fácil, que provavelmente alagaria os cinemas de lágrimas, nem para a comédia simplista de costumes – com algumas pinceladas de absurdo. Essa forma de se expressar através do humor não é a invenção da roda, já que no século XIX, por exemplo, Oscar Wilde já brincava com essa fuga da realidade com a criação de personas em sua peça “A Importância de ser Prudente”. Todavia, o grande encantamento provocado com essa visão idealizada da infância por Hape é que seu desenvolvimento como comediante, imitador, criador de personagens, se dá de forma intuitiva, preocupando-se com a aceitação das pessoas próximas.
O cinema alemão contemporâneo costuma ser mais diretos em suas representações do que seu vizinhos da Europa, trazendo obras que abordam o preconceito, a discriminação e a intolerância de forma mais contundente – e ainda sim distantes do didatismo. Em “O Menino que Fazia Rir” não é diferente, mesmo que as construções de outros personagens fiquem prejudicadas pelo enorme peso de Hape na trama. O jovem Julius Weckauf segura o desafio de liderar o elenco de forma magistral, com enorme talento.
Os únicos momentos em que o protagonismo de Hape possui concorrência são aqueles que apresentam as mudanças na família, esta como uma personagem-instituição. Antes unida, festiva, celebrante e agregadora, precisará resistir às crises comuns a esse tipo de reunião de pessoas. A maneira sentimental como ela soluciona seus problemas contrasta com a lógica do protagonista, que apesar de infantil não soa problemática. O roteiro nesse momento permite ao espectador revisitar algumas atitudes e comportamentos de criança, quando aliamos a espiritualidade comum à época (e perdida na vida adulta) com uma dose de consciência recém-chegada e às custas das pancadas da vida.
Só que o destaque mesmo do longa-metragem é o primoroso uso da luz na parceria de Caroline Link com a diretora de fotografia Judith Kaufmann. Partindo da solaridade do primeiro ato, “O Menino que Fazia Rir” reflete os sentimentos de Hape a partir desse elemento da sua mise-en-scene. A maneira como os cenários vão se internalizando, suas cores esfriando – não necessariamente em um processo, já que a vida se assemelha mais a uma montanha-russa do que a uma gangorra – anda de mãos dadas com um protagonista que, por alguns momentos, se revela mais introspectivo.
O uso da luz como principal forma de linguagem acaba realçando o bom trabalho de direção de arte e figurino quando dessa internalização de cenários tanto quanto às belas locações nas tomadas externas. O uso do amarelo e os objetos como flores, vasos e frutas sempre bem enquadrados, traz uma linguagem pictórica quase van goghiana, como se Hape talvez fosse um pouco gênio estranhando seu ninho – sem esquecer que tais exageros interpretativos poderão ser creditados ao fato de que foi do biografado a prerrogativa de contar a história. O trabalho de Kaufmann, tão desafiador, se encerra com um bom uso da artificialidade no ato final, como se a realidade quisesse ser reimaginada.
Ao aliar protagonista muito bem defendido por um jovem ator e uma linguagem visual ao mesmo tempo agradável e esclarecedora, “O Menino que Fazia Rir” foge do óbvio ao ensinar uma bela lição de como sobreviver em um mundo que exige constantes reinvenções de nós mesmos.